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Entrevista com Jaqueline Hasan Brizola – parte 2

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

No trecho publicado na semana  anterior, a historiadora Jaqueline Hasan Brizola nos falou sobre sua iniciação no universo da pesquisa e sobre sua dissertação de mestrado. Leia a continuidade de sua entrevista!

3) Você pesquisou processos-crime do acervo do Arquivo Público. Em que essa documentação lhe ajudou na construção de seu argumento?

Fui para o Arquivo Público por sugestão do professor Paulo Moreira, que esteve na minha qualificação e fez apontamentos muito importantes. A ideia inicial era encontrar mais detalhes da vida dos sujeitos que estavam à frente da vacinação ou das “políticas sanitárias preventivas”, em meados do século XIX, como foi o caso do vacinador da Capital, Dr. Roberto Landell, ou do presidente da comissão de higiene, Dr. Manoel da Silva Ubatuba. Comecei pelos inventários, mas logo percebi que os processos crime poderiam ser melhor aproveitados. A partir daí, teve início a parte mais divertida da pesquisa, além de conviver com colegas pelos quais tinha muito apreço na sala de pesquisa, pude me inteirar dos pormenores da vida desses médicos, acompanhar as muitas dívidas que acumularam e as cenas de violência que protagonizaram. Em um dos muitos processos em que o vacinador Roberto Landell aparece como réu, sob guarda do Arquivo Público, há detalhes de uma briga entre ele e o acusador, Dr. Ubatuba, este último, segundo o processo, teria sofrido violência física. Ubatuba, que era presidente da comissão de higiene da Província e que também era médico, havia assumido o tratamento de um menino que outrora fora acompanhado por Landell. Segundo a defesa do vacinador, o Dr. Ubatuba, utilizou-se da prerrogativa de presidente da comissão de higiene para assumir o tratamento do menino, passando por cima do trabalho de Roberto Landell, um homem incansável na defesa da ciência. Dr. Landell era formado pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, um escocês que escolheu a Província de São Pedro para atuar como médico e viver com a família.  Ainda segundo o processo, a discussão gerada em torno do tratamento adequado a ser ofertado ao menino enfermo teria acabado em “chutes e pontapés”, golpes que só foram apartados por ação de outros médicos que se encontravam no local, como o Dr. Caldre Fião, testemunha do Dr. Ubatuba. Ao acessar esses e outros documentos, achei importante relativizar a ideia de que havia um consenso entre os médicos quanto as formas adequadas de tratamento das doenças. Neste caso, a briga entre os esculápios, fora motivada por divergências na condução do tratamento de um menino, mas haviam outras incompatibilidades. No século XIX, existiam muitas medicinas, ou melhor, muitas formas socialmente aceitas de oferecer tratamentos aos enfermos. A medicina alopática, dos medicamentos químicos ainda era muito incipiente, barbeiros sangradores ou curandeiros eram, muitas vezes, mais considerados que cirurgiões. No caso dos médicos diplomados, também havia interpretações divergentes quanto à origem e tratamento das enfermidades, muitos deles foram contrários à vacina, quando esta passou a ser aplicada e isso ocorreu não só no Brasil. As divergências entre o primeiro vacinador da capital e o presidente da comissão de higiene da Província no tratamento de um menino enfermo encontradas em um processo crime reforçaram minha argumentação. Acho que essa foi a grande contribuição dos documentos do Arquivo Público para o trabalho.

Jaqueline Hasan Brizola
Jaqueline Hasan Brizola
4) Qual a temática da atual pesquisa de doutorado? Você utilizará documentação do Arquivo Público novamente?

A temática atual da pesquisa no doutorado segue sendo em história social da saúde, mas, desta vez, recuei um pouco no tempo e ampliei o espaço. Estou interessada em entender as elaborações dos sujeitos que viveram em grandes portos escravistas entre meados do século XVIII e princípios do século XIX para conter as epidemias que supostamente chegavam do além mar. É um período anterior à difusão da vacina, onde as técnicas de combate às doenças epidêmicas estavam muito vinculadas às quarentenas e ao isolamento de suspeitos. Por isso, estou investigando duas cidades de extrema importância para os Impérios aos quais pertenciam ao longo do período colonial, Rio de Janeiro, no Brasil, e Havana, em Cuba. Tais localidades recebiam um grande número de escravos no período, e, não raro, estes sujeitos eram vistos como os únicos responsáveis pelas epidemias de varíola, febre amarela, entre outras, que assolavam as populações americanas. A ideia de que os africanos carregavam as doenças contagiosas atravessou os séculos em nosso país. Na década de 1930, por exemplo, Otávio de Freitas publicava um livro intitulado. “Doenças africanas no Brasil”, esta obra reforçou o consenso de que os quadros epidêmicos no Brasil, dos séculos XVIII e XIX, eram responsabilidade dos africanos. Por certo, as condições insalubres às quais estavam submetidos e a viagem transatlântica que lhes retirava de seus lugares de origem, contribuíram para o adoecimento desses sujeitos, mas imputar-lhes a culpa pelos quadros epidêmicos de um território imenso como o Brasil em um momento em que não existia vacina ou um conhecimento melhor elaborado das formas de transmissão das doenças é reforçar o racismo, é ignorar as inúmeras relações que se estabeleceram no passado e que favoreceram o desenvolvimento de epidemias, além disso, atribuir culpa a determinados grupos por situações complexas como essas me parece um grande erro que deve ser corrigido. Venho percebendo que as medidas de controle existentes entre meados do século XVIII e princípios do século XIX eram frequentemente destinadas aos navios recém-chegados da África, enquanto outros, com soldados, por exemplo, eram melhor tolerados, ou seja, atracavam nestes portos sem maiores problemas, a análise destes processos já se encontra na qualificação do meu doutorado. Ainda estou no meio da pesquisa e, desta vez, não utilizo as fontes do Arquivo Público porque faço uma comparação entre duas cidades fora da Província, está sendo uma experiência interessante, mas também desafiadora, especialmente neste momento de pandemia, em que a locomoção está limitada e os arquivos fechados.

 Na próxima semana, leremos a parte final da entrevista com a historiadora Jaqueline Hasan Brizola!

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