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Entrevista com Jaqueline Hasan Brizola – parte 1

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Jaqueline Hasan Brizola é mestre em História (2014) pela UFRGS. Em 2016, sua dissertação (disponível em https://lume.ufrgs.br/handle/10183/116631) recebeu o prêmio de melhor dissertação de mestrado em História da Ciência pela Sociedade Brasileira de História da Ciência. Atualmente é doutoranda em regime de cotutela entre o Programa de pós-Graduação em História da UFRGS e o Programa de Doctorado em Estudios Históricos de la Ciencia, Medicina y Comunicación Científica de la Universidad de Valencia (Espanha).

 Questionário elaborado por Rodrigo de Azevedo Weimer e Clarissa Sommer Alves.

1) Jaqueline, você poderia nos contar sobre sua entrada no universo da pesquisa?

Ainda durante a graduação, quando definia o tema do trabalho de conclusão de curso, o famoso TCC, decidi, certa vez, entrar no Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, quando ainda funcionava em uma sala dentro do Hospital. Naquele momento, estava interessada em buscar registros de mulheres escravizadas, porque havia definido trabalhar com questões relacionadas à vida delas, colocando-as no centro da análise histórica. A história dos grandes homens, cheias de datas e marcos temporais já não fazia sentido. Sou da geração formada na “História Problema”, aquela voltada aos sujeitos, suas ações em sociedade, costumes e elaborações, aquela que oferece respostas às perguntas que colocamos no presente. Depois de algumas visitas ao Arquivo da Santa Casa, percebi que eram múltiplas as possibilidades de pesquisa naqueles documentos. Por ali passaram homens e mulheres escravizadas no século XIX, mas também sujeitos livres pobres, que não possuíam recursos para receberem tratamentos em casa, por ali passaram barbeiros sangradores negros, boticários que manipulavam as drogas existentes à época, médicos e provedores da Irmandade, que supostamente prestavam socorro aos despossuídos em troca de prestígio e poder em uma sociedade altamente hierarquizada. Um ano depois da primeira visita ao arquivo, conclui o primeiro trabalho na área da História social da saúde e do adoecimento; Cativeiro e Moléstia. A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e o perfil de escravos enfermos no contexto do fim do tráfico negreiro no Brasil (1847 – 1852).  Essa primeira aproximação com a pesquisa em fontes primárias foi determinante para seguir o mestrado e o doutorado, para conhecer outros arquivos e me decidir por essa profissão que, como nos dizia Silvia Petersen, com sua inteligência costumeira, é capaz de nos envolver e apaixonar por toda a vida.

Jaqueline Hasan Brizola
Jaqueline Hasan Brizola

 2) Você pode falar, em linhas gerais, de sua pesquisa de mestrado?

Minha pesquisa de mestrado surgiu das lacunas deixadas pelo TCC. Ao investigar as doenças dos escravizados que viveram em Porto Alegre no século XIX, percebi que a varíola era endêmica na cidade e que, por vezes, se manifestava em quadros epidêmicos. Não eram incomuns os casos de “bexigas” que podiam ser simples ou confluentes no grande livro de matrícula geral de enfermos ao longo dos oitocentos. Por influência de grandes historiadores brasileiros, como Sidney Chalhoub, em “Cidade Febril”, ou, Silvia Lara, em “Fragmentos Setecentistas”, defini que faria um trabalho em História social, enfocando mais uma vez os sujeitos históricos, desta vez os variolosos. A partir daí, iniciou-se um caminho longo. Era preciso entender o porquê de a varíola ser uma doença que não dava tréguas no século XIX, já que a vacina existia desde o final do século XVIII, foi aí que saí da Santa Casa e fui percorrer outros arquivos em Porto Alegre, passei três meses no Arquivo Histórico lendo os relatórios de presidentes da Província, felizmente essa documentação também pode ser encontrada online no site “Center for Research Libraries”. Estes papéis continham o esforço realizado pelos representantes provinciais para vacinar a população, em alguns casos, os mapas de vacinados, e muitas queixas por parte dos mandatários da Província sobre a negligência das pessoas em relação às medidas de combate à varíola, incluindo a vacinação. Ironicamente, não foi por falta de vacina ou por falta de planejamento que a vacinação contra a varíola não funcionava adequadamente naquele momento, por certo existiam dificuldades inerentes ao contexto histórico, mas havia um esforço considerável por parte dos agentes responsáveis, tanto na capital, Porto Alegre, quanto na Província, à época chamada de São Pedro, para garantir o preventivo à população. A análise destes processos encontra-se no primeiro capítulo da dissertação. No segundo capítulo, levantei outras questões que me pareceram relevantes no decorrer da pesquisa. Ao perceber a quantidade de altas, mesmo entre os variolosos (as) na Santa Casa de Porto Alegre, salvo em momentos de epidemia, considerei importante relativizar uma ideia há até pouco tempo dada como certa pela historiografia brasileira, a de que o Hospital, antes do século XX, era apenas um lugar para uma boa morte, nesses locais encontravam-se os moribundos, que não tinham outra sorte se não aguardar a morte certa nos corredores de um local insalubre e cheio de pestilências. Em verdade, e segundo as pesquisas que venho realizando, o cenário encontrado nos Hospitais do século XIX poderia não ser tão desolador assim. Ali existiam profissionais formados em Universidades, como fora o caso do Dr. Caldre Fião, diplomado em Medicina Homeopática  no Rio de Janeiro e atuante na Santa Casa de Porto Alegre desde a década de 1830, havia botica, acesso a medicamentos, dieta especial e acomodações melhores que aquelas com as quais os sujeitos menos abastados da sociedade estavam acostumados, ou seja, talvez o elevado número de altas que encontrei, inclusive entre os escravos, no período que investiguei, possa estar relacionado com essas múltiplas possibilidades de reabilitação que o Hospital oferecia no período. No terceiro capítulo, trabalhei especificamente com a epidemia de varíola que levou a óbito 1% da população de Porto Alegre no ano de 1874. Em resposta à situação de caos em que a cidade se encontrava, a Câmara mandou construir às pressas um lazareto em uma chácara no caminho dos Moinhos de Vento, onde as autoridades mandaram isolar os escravos e os livres pobres que padeciam da doença, sabemos disso porque todos aqueles que passaram pelo lazareto antes da morte, foram enterrados no Campo Santo, um local destinado aos miseráveis, localizado além dos muros do cemitério da Santa Casa, os ricos e abastados eram sempre enterrados nas catacumbas das Irmandades, entre os muros. O espaço de enterramento era algo muito importante naquela sociedade, e a segregação existente na vida era reproduzida também na hora da morte. De qualquer maneira, não foram apenas os pobres e escravos que padeceram durante a epidemia, os lugares de enterramento dos ricos também ficaram lotados naquela ocasião, isso porque a resistência em vacinar e a ignorância dos meios de contágio era algo compartilhado pelos diferentes sujeitos que viviam em Porto Alegre no século XIX, independentemente da posição social que ocupavam naquela sociedade escravista e hierárquica. Os desfechos desse evento podem ser explicados pelos costumes compartilhados no interior das diferentes comunidades que viviam na capital em meados do século XIX, esses costumes apontavam para a não adesão à vacinação, havia desconfiança, medo e muito pouco diálogo por parte das autoridades com a população em geral, a epidemia que investiguei no terceiro capítulo ocorre neste contexto.

 Confira na próxima semana a continuidade da entrevista com Jaqueline Hasan Brizola!

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