O dia em que Anjinho tentou matar Sapo
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Em 29/6/2023 foi lançado o Arquivo LGBTQIAPN+, catálogo seletivo de documentos judiciais sobre a comunidade no acervo do Arquivo Público. Foram escolhidos processos-crime porque a minúcia das investigações policiais e judiciais permite perceber indícios de relações de classe e sociossexuais, performances e identidades de gênero, orientações sexuais, territorialidades e sociabilidades entre 1942 e 1964.
Nesses fragmentos de um passado agora disponível para reconstituição, temos o processo 6.561 autuado na Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre em 1955. Trata-se de um triângulo amoroso envolvendo três homens, que culminou em uma tentativa de assassinato na Igreja de Santa Terezinha, na esquina das ruas Ramiro Barcellos e São Carlos.
O réu, Angelino P. S., e a vítima O. M. dos Santos (optamos por manter o anonimato dos envolvidos) eram conhecidos pelas alcunhas de Anjinho e Paca. Os dois caras se conheciam havia quatro anos e residiam juntos em um barracão na rua Voluntários da Pátria, evidenciando serem homens pobres na sociedade em urbanização e industrialização dos anos 1950. Eles foram qualificados como “pretos”, o que também evidencia o racismo estrutural que dificultava que atingissem posições socialmente mais favoráveis.
Ali abrigaram o menor José Antônio M. S., 16 anos, que passou a manter relações sexuais com ambos. O trio tomava cachaça, diariamente, no “bar Azul” na mesma região onde residiam. Anjinho, na noite de 17 de fevereiro de 1954, tentou matar seu companheiro por ciúmes do garoto. Atingiu-o com uma tijolada na escadaria da igreja.
Anjinho pagava alimentos para José Antônio e o sustentava materialmente, mas a partir de determinado momento o rapaz passou a preferir manter relações com Sapo. Supostamente ele não sabia que o moço transava com o co-habitante, tendo o descoberto em uma discussão acalorada em que foi chamado de “burguês que não comia ninguém”. Além do despeito pela rejeição, certamente pesou na sua atitude a ofensa dirigida a um homem praticamente sem posses.
A vítima sobreviveu, o réu foi condenado a três anos e meio de reclusão e o pivô do triângulo amoroso foi morar na Vila Coréia, também na Voluntários. Enquanto transcorria o processo, José Antônio foi convidado por um apaixonado Anjinho para trabalharem juntos em uma granja de arroz.
Se a sociedade do período de “experiência democrática” (1945-1964) é conhecida por alguns como “Anos Dourados”, esse e outros processos possibilitam verificar sua face pouco conhecida, noturna, oculta, não-normativa. O estudo dos autos também permite descobrir um pouco sobre a sexualidade de populares. Para conhecer outros episódios, clique aqui.