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Entrevista com Thaís de Freitas Carvalho - Parte II

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana passada, compartilhamos a primeira parte da entrevista com a historiadora Thaís De Freitas Carvalho (Parte I), em que ela nos falava sobre seus percursos de pesquisa em torno da cultura popular e da boemia noturna na cidade de Pelotas. Confira a sequência desse diálogo:

5) O Arquivo Público não tem ferramentas de busca que selecionem os documentos a partir do horário dos fatos que os ocasionaram. Naturalmente, você teve que fazer uma varredura exaustiva. Gostaria de perguntar qual foi sua reação ao saber que deveria olhar todos documentos, e também se essa ideia do conjunto lhe ajudou a interpretar melhor o corpus específico por você destacado.

Confesso que eu esperava bem menos ocorrências noturnas do que o montante verificado na seleção dos processos-crime. Ressalto que o primeiro contato com as fontes sob esse recorte noturno foi ainda na pesquisa da dissertação, então foram cerca de 120 processos concernentes ao horário das 18 às 7 hs da manhã, o que me surpreendeu positivamente – se é que é permitido a nós, historiadores, “comemorar” registros que configuraram crimes no passado. De toda forma, nessa pesquisa extensa apareceram múltiplas categorias; processos concernentes a incêndios, arrombamentos e atropelamentos, por exemplo, ocorrências que não necessariamente comunicavam ao tema da sociabilidade noturna. Com efeito, eu já esperava uma pesquisa “clássica” de arquivo, horas de cadeira decifrando os “hieroglifos” dos escrivães – os laudos datilografados eram um alívio –, mas a consciência do trabalho exaustivo foi se impondo aos poucos, ao longo do percurso, quando percebi que não seriam apenas alguns tipos de ocorrências, mas sim, uma miríade de situações que acabaram por revelar uma Pelotas noturna muito mais adensada do que eu imaginava.

Quanto à sua pergunta sobre a visão do conjunto, isso é realmente muito pertinente, pois de fato fez muita diferença na percepção de meu recorte. Ter de passar por, pelo menos, uma página de leitura da queixa-crime de todos os processos da Comarca de Pelotas na década fez com que a pesquisa ganhasse um sentido em perspectiva que é quase impossível de transpor objetivamente na narrativa, mas que, sem dúvida, impacta a percepção do todo. A experiência de ocorrências múltiplas na pesquisa do mestrado, por exemplo, ajudou muito a ter em mente os vieses da fonte e não incorrer no vício de interpretar uma seleção de eventos conflituosos enquanto o cotidiano dos bares, ou mesmo encarar a vida noturna da cidade como um emaranhado de crimes e subversão. Esse cuidado fez ainda mais sentido no cotejo dos processos com os jornais. 

6) Você poderia nos relatar sobre como foi a experiência de cruzar processos-crime e imprensa?

Meu único arrependimento foi não ter começado antes. É claro que, para executar essa empreitada no universo de mais de uma centena de processos pesquisados na dissertação, eu precisaria de, no mínimo, mais três pares de olhos, principalmente tendo em vista as dificuldades de buscas avançadas e digitais já mencionadas. Entretanto, devo destacar que a digitalização emergencial fornecida pelo APERS aos pesquisadores no início da pandemia foi absolutamente essencial, principalmente em um contexto de arquivos fechados por quase 7 meses. Mas mesmo em circunstâncias normais, as dificuldades dessa busca não afetaram apenas as pesquisas no APERS, como também a investigação com os impressos da época, que estão locados na hemeroteca da Bibliotheca Pública Pelotense; lá, pouquíssimos exemplares do período estão digitalizados, o que demanda muito mais tempo e recursos do pesquisador na fase de coleta. Além disso, a BPP cobra por cada clique das obras, portanto a imensa maioria dos excertos se deu por meio de transcrição. Na época, a sala de pesquisa não possuía computadores, então eu levava o notebook e passava os dias preenchendo minhas planilhas manualmente.

Obstáculos à parte, é inegável que o diálogo entre processos e jornais propiciou o desenvolvimento de hipóteses importantes relativas a algumas lacunas da pesquisa, como, por exemplo, a parcela pequena de agressões leves nos processos-crime derivados de brigas em bares. As hospitalizações de feridos por armas (alegadamente acidentes) e as ocorrências de desordens e embriaguez ocorridas nas noites da cidade e veiculadas com frequência nos periódicos deram força à suposição de que poucos desses casos leves eram levados à justiça. Também ficaram mais visíveis as relações dos periódicos com as delegacias, bem como proximidades e diferenças entre os discursos de escrivães e noticiaristas, o que ajudou a situar o momento vivido pela imprensa local no período. Sobretudo, os jornais contribuíram no sentido de ampliar o foco da vida noturna dos bares e botequins para além do momento do conflito, pois também veiculavam anúncios de bailes, cinemas, teatros, cafés e outros eventos nas noites da cidade, o que não deixava perder de vista também a dimensão lúdica e cotidiana das diversões noturnas populares.

Thaís de Freitas Carvalho
Thaís de Freitas Carvalho
7) Seu trabalho traz uma consistente discussão sobre masculinidades, um tema importante e merecedor de maior aprofundamento por parte da historiografia. Como você trouxe esses debates para seu trabalho e que papel eles desempenham em seu argumento?

Essa é uma questão bem importante, de fato. O peso da masculinidade nos conflitos noturnos dos bares foi ganhando densidade ao longo da pesquisa, pois a ausência de mulheres nos processos havia me causado nítido estranhamento. Em consequência, o cruzamento destes com as notas na imprensa foi absolutamente essencial, pois ajudou a compreender que a ausência feminina nesses documentos era circunstancial e não representativa do cotidiano dos botequins. Ou seja: as mulheres também eram detidas por embriaguez e desordens nos bares, mas não eram citadas nos processos e inquéritos. Isso diz mais sobre como essas mulheres eram vistas pela sociedade e pela justiça, e mesmo sobre as implicações das relações de gênero nas performances violentas leves e graves entre os homens do que sobre a inserção das mulheres nesses circuitos de sociabilidade.

De toda forma, desde o momento da coleta de fontes, já foi possível perceber que seria impossível fugir completamente às reflexões de gênero se eu quisesse ser honesta com a minha pesquisa. Cheguei a ser aconselhada a deixar essa questão de lado devido à sua complexidade, para que não tomasse um espaço excessivo em relação aos objetivos da tese. Mas no meu entendimento isso seria o mesmo que amputar o meu objeto, uma vez que, diante das narrativas que compunham os depoimentos sobre esses conflitos, era impossível não compreender essa sociabilidade como locus privilegiado das performances de virilidade. Assim, ao estruturar os capítulos da tese, pensei em partir primeiro das condições objetivas ligadas à sociabilidade noturna dos bares e da Pelotas da época – o que, onde, quem, quando, como –, aproveitando ao máximo todos os dados que os inquéritos me propiciavam. Em seguida, me detive na pesquisa com jornais e nas formas como a noite dos bares era noticiada. A partir daí, já haviam se delineado alguns elementos não tão objetivos, mas que desempenhavam papel crucial na dinâmica dessa sociabilidade, como a embriaguez, o jogo e a virilidade. Resolvi então dedicar o último capítulo à reflexão sobre como essas subjetividades transformavam as relações nesses espaços.

A cultura de bar perceptível a partir dessa pesquisa não é exclusivamente noturna, mas as diferenciações entre os turnos trazem à tona o impacto da noite para essa sociabilidade. Durante o dia, as incursões eram mais efêmeras e intermitentes, além de envolver interesses múltiplos, uma vez que muitos desses botequins eram também armazéns que proviam mantimentos e artigos domésticos em geral. À noite, a procura pelo armazém diminuía, ao passo que as interações no bar tinham seu tempo de duração estendido – consequentemente, com mais tempo para atingir outros “estágios” da embriaguez, para usarmos concepções em voga na época. O quórum de jogadores também aumentava, o que acabava por produzir condições que estimulavam as disputas entre os frequentadores. Com isso, as performances de virilidade apareciam ao mesmo tempo enquanto causa e consequência dessas verificações mútuas de respeito perante os demais, e especialmente se considerarmos o contexto rio-grandense, que ainda trazia bem vívidos seu belicismo, seus ressentimentos de conflitos passados – alguns à época ainda bem recentes –, desigualdades, escravidão e imigrações. Não por acaso, essa respeitabilidade atrelada ao conflito e à violência – parte do que Barrán chama de “cultura bárbara” – fazia parte também das atividades econômicas, pois muitas das profissões relatadas pelos frequentadores dos bares relacionavam-se ao abate e manejo de carnes e couros de animais.

Em vista disso, as reflexões finais do trabalho se propõem a dar conta de teias mais subjetivas que conectam as estruturas desta sociabilidade. Escrito já com um ano de pandemia, foi um esforço para o qual gostaria de ter tido mais fôlego e que certamente merece muitos aprofundamentos futuros, mas, sem dúvida, foi fundamental para o argumento da tese. O hábito arraigado do botequim ao fim do dia, que ainda permanece nos subúrbios e periferias mantendo grande parte dos elementos que víamos há um século atrás, está intimamente ligado às conotações que nós, enquanto sociedade, atrelamos ao que é respeitável ou honrado. Em contextos de crises econômicas, insegurança e fragilidades de toda ordem, aquele que menos possui vai se aferrar ainda mais àquilo que, a despeito de sua intangibilidade, pode significar a possibilidade de mais um dia. A sociabilidade dos bares, com suas performances viris, suas apostas a dinheiro, seus brindes e seu escape momentâneo de condições ásperas de vida, perpetua-se justamente nesse diálogo constante entre o mundo como ele é e o mundo como poderia ser. Espero ter contribuído para que olhemos para esse fenômeno e toda sua complexidade não com complacência, mas com uma abordagem mais compreensiva e mais humana.

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