Entrevista com Marluce Dias Fagundes - Parte III
Publicação:

Na última quarta-feira (23/11), Marluce Dias Fagundes falou sobre o período por ela estudado, seja no que toca à representação dos anos 1940-1960 como “anos dourados”, seja no que diz respeito a um menor interesse de historiadoras e historiadores pelo período dito de “experiência democrática”. Confira a parte final da entrevista!
7) Em artigo de 2019 você analisa os bas-fonds da cidade de Porto Alegre, na figura da rua Voluntários da Pátria. Você pode nos explicar um pouco mais sobre essa pesquisa? E de que maneira esses lugares “malditos” se relacionavam às “vilas de malocas”?
Essa pesquisa deve-se a uma ampliação de uma discussão iniciada na dissertação sobre os hotéis, pensões ou outros tipos de lugares que foram cenários para crimes sexuais, sendo que em maioria estavam localizados na área central da cidade, na Rua Voluntários da Pátria ou em suas proximidades. A partir do conceito de bas-fonds, do historiador francês Dominique Kalifa, explorei a dimensão desses lugares, desses sujeitos e do imaginário social sobre essa parte do centro de Porto Alegre, tão rechaçada pela parte da sociedade formada pelos “cidadãos de bem”. Com isso, cruzei alguns dos processos de crimes sexuais, em maioria de natureza de sedução, com a análise do jornal Diário de Notícias no mesmo período. No caso do jornal, dedicava duas colunas policiais e são muitos os artigos tratando sobre o espaço do Centro que a noite é tomada pela urbe da cidade, devido à área ser reconhecida pela prostituição, pelo crime e, entre outras características, de um bas-fond. Além disso, nessa mesma época outra área da cidade enfrentava um processo de limpeza social, com a ideia de colocar fim a conhecida zona de prostituição da Azenha, no caso da Rua Cabo Rocha, que coincidentemente era vizinha da Delegacia de Costumes. Portanto, o artigo buscou analisar, além do cruzamento dos processos de crimes sexuais com o Diário de Notícias, o papel dos operadores da Justiça, seja o policial que faz a vigilância da ordem social, seja do juiz ao julgar as mulheres que foram violentadas em ambientes degradantes que não as favoreciam em reconhecer o crime contra os seus corpos.
8) Essas últimas pesquisas fazem parte de seu trabalho de doutorado? O que podemos esperar de agora em diante?
Minha pesquisa de doutorado trata de casos de divórcios em que a violência tenha sido uma das motivações para a separação. Assim, hoje estou pesquisando em processos judiciais civis, os quais as narrativas das partes são construídas de maneira semelhante aos processos criminais, em que se procura uma vítima e um culpado. Uma escolha metodológica realizada foi de examinar as ações requeridas pelas mulheres, pois como demonstrado pela historiografia do tema do divórcio, as mulheres eram maioria nos pedidos de divórcio, não só no Brasil, mas em outros países ocidentais. Além disso, a prioridade são as narrativas litigiosas, as quais correspondem aos principais motivos alegados para o pedido de divórcio, por abranger os relatos frequentes de maus tratos e de variadas formas de violências vividas no ambiente conjugal.
Posso afirmar que o aporte que construí, não só com os estudos de gênero e feministas, mas, também, com os estudos de história do crime e da justiça estão sendo essenciais para a construção da tese. O corpus documental privilegia fontes de natureza jurídica, legislativa, periódica entre outras obras bibliográficas, produzidas por especialistas que se dedicaram aos estudos dos temas do divórcio, da família, do casamento e da violência de gênero. Portanto, o recorte temporal parte dos anos 1940 até 1985, procurando compreender as legislações sobre os direitos civis das mulheres, os personagens que lideraram algumas campanhas, sobretudo mulheres, os feminismos, para chegar à publicização da violência contra as mulheres.
9) Você encontrou referências a identidades de gênero e sexualidades desviantes?
Eu não separei nenhum desses casos propriamente, mas encontrei casos de crimes sexuais, sobretudo de natureza de “atentado violento ao pudor” contra meninos, e com uma lida rápida se encontra discursos homofóbicos como forma de correção, ou punição do que se entende por sexualidades desviantes.
10) Quais paralelos podem ser estabelecidos com a historiografia dos anos 80 e 90, em boa parte capitaneada pela professora Sandra Pesavento, sobre lugares malditos na cidade na virada do século XIX para o XX? Podemos dizer que se trata de uma dinâmica historicamente recorrente em Porto Alegre?
Acredito que sim, pois Porto Alegre, a cidade que se expande a partir do seu Centro, acaba por excluir e remover, os sujeitos e os lugares, para longe da área que se “desenvolve”. Diferente de outras cidades, que acabam tendo muito bem marcada essa divisão, Porto Alegre possui um histórico de remoções da população mais pobre para áreas limítrofes. Lugares não só malditos pelo imaginário social das elites, mas que ganha às características de subcidade ou de submundo. Na década de 1950, enquanto o automóvel passa a ser uma realidade de algumas famílias, o mínimo de infraestrutura não chega para essa parte da sociedade que foi transferida, e consequentemente excluída da cidade que se desenvolve. Nesse sentido, o estudo dessa época, em especial, da década de 1950, é urgente para perceber como essa lógica tão marcada na virada do século XIX para o XX permanece para parte da população de Porto Alegre. E, ainda, pelo processo de êxodo rural, a cidade acaba recebendo sujeitos de cidades do interior do estado, que acreditam alcançar uma melhor condição de vida na capital, mas passam a integrar o lado desprezado por Porto Alegre. Como exemplo disso, me refiro as muitas jovens mulheres que vieram para a cidade nesse período para estudar e, principalmente para trabalhar, mas foram exploradas e agredidas de diferentes formas, seja pelo não pagamento de rendimentos, seja pela violência sexual e física de patrões.