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Entrevista com Marcelo Santos Matheus - Parte 2

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana passada (Parte 1), o historiador Marcelo Santos Matheus nos apresentou um apanhado geral de suas pesquisas. Vamos ler a continuação de sua entrevista, conhecendo suas ponderações sobre o protagonismo de escravizados!

4. Em uma resenha publicada com o professor Manolo Florentino você fez uma crítica velada àqueles que dão “excessiva ênfase no protagonismo dos cativos”. De forma mais ou menos explícita, essas questões aparecem também em sua dissertação e em sua tese, definindo seus interlocutores. Como estabelecer a medida adequada daquela ênfase? Onde está o limite entre a ênfase aceitável ou não no protagonismo de escravizados?

Marcelo Matheus
Historiador Marcelo Santos Matheus

Nunca é fácil escrever um artigo a quatro mãos, não é mesmo?! Em razão do ótimo relacionamento que tinha com o professor Manolo, que nos deixou há pouco, posso dizer que a produção desse texto foi muito profissional, sendo alvo de muito debate e discussão. De maneira geral e/ou em algum grau, concordo com o Manolo que alguns trabalhos analisam certo contexto como se apenas os escravos e suas ações explicassem determinada realidade (daí o título da resenha “Escravos sem senhores não existem”). Contudo, e respondendo somente por mim agora, acho que nunca questionei uma maior ou menor ênfase no protagonismo dos escravos. Acho inquestionável que os cativos, dentro dos limites e parâmetros impostos por uma sociedade escravista, eram sujeitos ativos, atores sociais importantes. Na verdade, a questão que quase sempre guiou minhas reflexões nunca foi tanto o protagonismo ou não dos escravizados e egressos do cativeiro, algo, novamente, com o que concordo e tomo inclusive como pressuposto, mas sim como entendemos tais ações. Daí a ideia de, na dissertação, discutir o porquê, como e quando escravos e escravas buscavam a liberdade e, na tese, debater como escravos e libertos participavam, dentro dos limites impostos por uma sociedade escravista e cada vez mais racializada, do processo de produção da diferenciação social e da desigualdade. Creio que, por vezes, idealizamos que tipo de conduta alguém que sofre com a violência (e talvez não haja violência maior do que a escravidão) deva ter, transferindo esse pensamento para a análise que fazemos de determinada realidade. E acredito que tal tipo de anacronismo é o que o historiador mais tem que tomar cuidado para não projetar o seu posicionamento político e ideológico sobre o objeto e os atores de seu estudo. Enfim, não acho que deve haver um “limite” no protagonismo. Ele está comprovadamente posto e explicitado pelo o que as fontes nos colocam e ensinam. Em outras palavras, o protagonismo era sistêmico – e sem compreendê-lo não há como entendermos aquela sociedade –, mas muitas vezes não era antissistema. No geral buscava-se melhorar as condições de existência (de si e dos seus), seja tendo o direito/acesso a uma produção própria (de roças ou, no caso da Campanha sul-rio-grandense, região foco de boa parte das minhas pesquisas, um pequeno rebanho) para melhorar as condições de alimentação, seja para dispor mais do seu tempo e ter mais autonomia (como, por exemplo, ter uma habitação própria), tentar conquistar a liberdade, para o que o diálogo com o(a) senhor(a) era decisivo, ou mesmo para ascender socialmente (no que se tornar senhor de escravos contribuía social e economicamente, sendo um traço de distinção social sem igual no Brasil do século XIX). Cito apenas exemplos do que encontrei nos documentos ao longo dos anos de pesquisa. E não vejo problema em identificar e descrever isso e, ao mesmo tempo, demonstrar todo o horror que era a escravidão e a violência em torno dela. Lembro de um episódio quando estava no sanduíche, na Universidade de Brown, nos EUA. Após uma palestra de João J. Reis, na qual Reis abordou a questão de que alguns escravos, em Salvador, mesmo em meio à escravidão eram senhores de outros cativos, um colega antropólogo que fazia doutorado na USP comentou comigo após a palestra: “pra que mostrar isso? Só vai dar argumento para quem é contra as cotas”. Eu respondi: “Alan, eu sou fortemente a favor das cotas, entretanto no meu trabalho debato esse mesmo tema [a ascensão social de egressos do cativeiro que, após conquistarem a liberdade, tornavam-se senhores de escravos], pois acho ele estruturante daquela sociedade”. O que quero argumentar lembrando desse diálogo é que, me parece, alguns debates contemporâneos contaminam o debate sobre o entendimento do nosso passado. E essa contaminação prejudica, inclusive, nosso entendimento sobre o presente – quando, por exemplo, nos surpreendemos com certas posições políticas de pessoas de estrato social e econômico inferior. Há uma relação entre esse passado escravista e a atualidade? Óbvio, e o mais nítido dessa relação é o racismo, oriundo e reforçado em grande medida pelo fato de que pessoas negras e pardas é que eram vítimas da exploração do trabalho escravo e, com o tempo e a falta de políticas públicas que minorassem e reparassem esse passado de discriminação social, tal relação reforça estereótipos e, de novo, o preconceito. Isso deve ser posto e denunciado, mas não pode deturpar ou nublar o que as fontes nos informam sobre o período que estudamos.

5.Na conclusão de sua dissertação você afirma que “a dinâmica das relações escravistas não era ditada pelos embates cotidianos entre senhores e escravos, pelo menos não antes de 1871”. De forma menos incisiva, essa também é a tônica de sua tese de doutorado. Como você encara a discussão sobre o protagonismo histórico de escravizados, e como você se posiciona nos debates historiográficos a respeito dessa temática?

Acho que já comecei a responder essa questão quando tratei da pergunta anterior. De fato, creio que a Lei do Ventre Livre é uma inflexão nas relações escravistas. A escravidão, que era a norma na história brasileira, com todos os processos derivados dela, desde anos anteriores à lei (no mínimo desde as leis que aboliram o tráfico atlântico) passa a ser ainda mais contestada, especialmente nos tribunais pelos escravizados, além do fato do Estado se intrometer na relação senhor x escravo de maneira mais incisiva. Até então, o que depreendo dos documentos é que a instituição em si não era questionada. O que se buscava era a liberdade individual (e/ou dos seus – familiares, pessoas mais próximas, irmãos de uma agremiação religiosa, etc.). Por seu turno, por vezes não consigo ou não me percebo me “posicionando” em certos debates. Por exemplo, a discussão em torno do papel estrutural da alforria – por um lado, se a liberdade era fruto de uma concessão senhorial ou da conquista dos escravos e, por outro, se a alforria reforçava ou minava o sistema. No primeiro caso, sempre vi uma falsa dicotomia: o fato do senhor, em última instância, ter que anuir com o processo que redundava em uma liberdade nunca não me pareceu que retira o protagonismo nos esforços dos escravos e escravas em chegar à liberdade. No segundo caso, acho até mais estranho. A alforria era um fenômeno anterior à formação da sociedade escravista brasileira (seja colonial, seja no período pós-independência), pois estava inscrita tanto nos códigos ibéricos, quanto na cultura de diferentes povos africanos (por isso, na tese, faço um debate historiográfico com a instituição da “pawnship” – que, grosso modo, era uma servidão temporária – presente em várias sociedades africanas). Portanto, ela era parte intrínseca do sistema. Contudo, de fato, a Lei de 1871 mudou o significado e as formas que os escravos podiam conquistar a alforria.

Outro exemplo: nas perguntas você utiliza a palavra “escravizado”. Apesar de ser raro encontrarmos esse termo nos documentos (até hoje só o vi em um ou outro processo-crime onde alguém alegava ser injustamente – “injustamente”, já que a escravidão era a norma – escravizado), não vejo problema nisso. Eu mesmo o utilizo, porém, não em contraposição à palavra escravo, mas em sintonia com o termo. Acho que ela ajuda a quebrar certa “naturalidade” no entendimento da escravidão: ela não era natural, mas social e historicamente produzida. Contudo, a liberdade também. Então, o problemático, a meu ver, é primeiro incorrermos no erro de naturalizar a noção de liberdade e, também, fazermos disso um cavalo de batalha, correndo o risco que questões contemporâneas contaminem o nosso entendimento sobre o passado. Enfim, o problema é sermos anacrônicos, um dos maiores pecados de um historiador. Podia citar também o “debate” acerca do papel da família escrava, que sempre me pareceu mal colocado (e reproduzido ipsis litteris por 10 em 10 trabalhos que abordam a questão da família cativa) e que, por obra do destino, pude ouvir isso presencialmente de Manolo Florentino, quando concordamos que A paz nas senzalas foi, em parte, mal compreendida por quem propôs o “debate” (ao qual nunca houve resposta, réplica, etc., e por isso coloco entre aspas). Mas não vou me alongar muito, pois trato especificamente disso na tese e, também, quero voltar ao cerne da sua pergunta. De fato, argumento que “a dinâmica das relações escravistas não era ditada pelos embates cotidianos entre senhores e escravos, pelo menos não antes de 1871”. Logo depois, afirmo que aquela sociedade era violenta e eivada de conflitos, ponderando que talvez não devamos exagerar no potencial explosivo de uma dicotomia entre cativos e seus senhores, já que a maior parte dos africanos escravizados emigrados (forçadamente) para o Brasil era proveniente de regiões onde a servidão gracejava e também porque os escravos e escravas nascidos no Brasil até meados do século XIX cresceram em uma sociedade onde a desigualdade era naturalizada e a escravidão a regra. Podia acrescentar que, apesar da existência de inúmeras revoltas, nenhuma delas colocou o sistema em cheque (algumas, como a dos Malês, tinha traços étnicos que, inclusive, ponderavam em continuar com a escravidão, mas a escravidão ‘do outro’). Concluo citando Sandra Graham, para quem as histórias encontradas por nós nos arquivos nem sempre revelam “o que esperamos, mas” o que, de fato, “aconteceu” (Caetana diz não, 2005, p. 27). Na conclusão da tese retomo tal questão – isto é, a tentativa de compreensão das engrenagens daquela sociedade e da legitimidade e estabilidade da escravidão no tempo –, aí em um debate sobre o entendimento da “força da escravidão”, título da obra de Sidney Chalhoub. No entanto, argumento que tal “força” residia mais na maleabilidade da instituição (leia-se, expressiva disseminação da posse cativa pelo tecido social e possibilidade de ascensão social intracativeiro e para fora dele, embora tal possibilidade de ascensão se processasse de maneira subalterna, ou seja, com libertos e/ou livres pardos e pretos sendo assimilados hierarquicamente, em uma posição social inferior, já que avançava e se aprofundava o processo de racialização) e não apenas na força e nos interesses dos grandes escravistas (que nas palavras de Chalhoub e de muitos outros historiadores do sudeste se confundem com fazendeiros/cafeicultores o que, curiosamente, não é chamado de história regional). Termino ponderando que compreendo que a “liga” do sistema estivesse no comprometimento de boa parte da população com o mesmo – isto, claro, ao lado do fato de que a elite política, a elite militar, a econômica, do judiciário e religiosa serem, também, pelo menos até a década de 1870, escravistas. Resumindo, argumento que a escravidão no Brasil só gozou de ampla legitimidade social e estabilidade temporal em razão da defesa e do amplo comprometimento social que a instituição tinha, entre todos os estratos sociais, e não apenas entre a “classe senhorial” (aqui, de novo, confundida com os grandes escravistas, mesmo que há décadas a historiografia mostre que, não obstante certa concentração da posse escrava, a absoluta maioria dos senhores era composta por pequenos proprietários). Portanto, creio que a dinâmica social era mais complexa do que explicada somente ou fundamentalmente por embates ou pela violência. Enfim, e voltando ao que abordei na resposta anterior, sem levar em conta a ação dos escravizados, não entendemos o Brasil oitocentista. Todavia, por vezes o comportamento daqueles indivíduos não bate exatamente com o que esperávamos, porém, penso que devemos entender e respeitar sua racionalidade.

 

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