Governo do Estado do Rio Grande do Sul
Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão
Início do conteúdo

Entrevista com Marcelo Santos Matheus - Parte 1

Publicação:

APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Marcelo Santos Matheus é graduado em História pela Universidade Franciscana (2010), mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2012) e doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). É autor de “Fronteiras da Liberdade” (Oikos, 2012) e de “A produção da diferença” (no prelo). Atualmente, é professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul.

1. Marcelo, você poderia nos apresentar em linhas gerais as principais questões abordadas em sua dissertação de mestrado e em sua tese de doutorado?

Rodrigo, em primeiro lugar gostaria de agradecer a você pelo convite para essa conversa. Tenho acompanhado e lido todas as entrevistas. Que belo projeto do APERS! Então: na dissertação, o tema central foi a questão da passagem da escravidão para liberdade. Para tanto, tentei discutir o que era o conceito e a noção de “liberdade” para aquela sociedade, formada por indivíduos oriundos de diferentes culturas (fossem elas europeias, africanas ou a que estava em gestação aqui nas Américas), e naquele contexto específico. Isto é, tentei fugir de um entendimento nosso, atual/contemporâneo, de que a liberdade individual era um valor conquistado e consolidado. Em resumo, tentei escapar de uma noção anacrônica, tanto em relação à escravidão quanto em relação à liberdade (recentemente tentei refinar e aprofundar tal reflexão em um artigo que traz uma mescla entre o que discuti sobre esse objeto na dissertação e no doutorado,  disponível em https://www.scielo.br/j/his/a/XWk8WjTdM4WWdWVzkJ6bRQR/?format=pdf&lang=pt Por sua vez, na tese, a questão principal foi a produção da desigualdade no Brasil oitocentista, ou seja, procurei elencar quais eram os elementos definidores da hierarquia social em uma sociedade escravista. Apesar de realizar uma análise geral, a partir dos inventários, foquei nos escravos e libertos, tentando entender seu protagonismo e participação nesse processo. Em ambas, tive a micro-história social italiana como norte teórico e metodológico. Assim, parti de questões amplas, que podem ser generalizadas para outros contextos do Brasil, no entanto, circunscrevi os recortes espacial, documental, etc., para, primeiro, tentar ter um maior controle sobre o objeto e sobre os indivíduos foco da pesquisa e, também, para responder aquelas perguntas gerais, mas de forma contextualizada.

Marcelo Matheus
Historiador Marcelo Santos Matheus
 2. Qual foi a importância das fontes documentais do Arquivo Público em seus trabalhos?

Foram fundamentais! Na realidade, desde a graduação (quando morava em uma cidade do interior, longe dos arquivos da capital – APERS e AHRS), utilizo as alforrias a partir do projeto “Documentos da Escravidão”, sem o qual minha monografia seria inviável. Durante a dissertação, quando as alforrias foram as fontes principais novamente, posso dizer que o APERS foi minha segunda casa, pois frequentava o arquivo de segunda a sábado, com sol, chuva ou frio. Já na tese, além das manumissões, os inventários post mortem foram o corpo documental custodiado pelo APERS que mais utilizei. Portanto, posso dizer que o APERS foi, e continua sendo, essencial para minhas pesquisas. Na verdade, olhando e pensando de maneira retrospectiva, o APERS foi tão importante na minha vida e na minha trajetória que, em função das visitas que fazia ao arquivo para pesquisar, naqueles momentos de ‘dar uma volta na quadra’ para descansar os olhos, sair para tomar um café, para conversar com um colega ou, no verão, ao final do expediente, ir até a orla, etc., me apaixonei pelo Centro Histórico e, quando me mudei do Rio de Janeiro para Porto Alegre ao final do primeiro ano de doutorado, decidi morar aqui no bairro. Assim, há quase 10 anos moro a uma quadra do APERS – o que facilita muito quando tenho que realizar alguma pesquisa no arquivo (rss)! Voltando à pergunta, gostaria de fazer um adendo: o meio de busca online é uma ótima ferramenta, infelizmente, até onde converso com alguns colegas, pouco utilizada. Um exemplo: só consegui reconstruir parte da trajetória da africana Mina Maria Francisca do Rosário (foco de parte da tese, de um capítulo de livro que irá sair em 2021 e do artigo: (https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/29289), que viveu boa parte de sua vida em Bagé, graças a esse recurso. ‘Joguei’ seu nome no sistema e encontrei Maria Francisca em diversos processos nos quais, na maioria, não havia nenhuma referência ao seu passado africano ou como escravizada. Creio que a vida e história de muitos libertos, em especial, que viveram no Rio Grande do Sul ainda podem ser recuperadas e compreendidas com a ajuda dessa ferramenta. Por fim, gostaria de lembrar algumas pessoas que foram essenciais nessa trajetória: ainda na graduação, o prof. Luís Augusto Farinatti foi quem me trouxe a Porto Alegre pela primeira vez, me apresentando o APERS e o AHRS. Depois, durante o mestrado, a orientação do Paulo Moreira foi fundamental para que aquele medo do Arquivo e dos manuscritos (dificuldade com a letra) fosse se esvaindo aos poucos, ao mesmo tempo que me guiava pela historiografia específica. E ao longo de todos esses anos, a interlocução com alguns colegas aqui do Rio Grande do Sul (seja em sala de aula, em encontros eventuais nos Arquivos, na saída para o café, com seus trabalhos, em Congressos, etc.), como Jonas Vargas, Max Ribeiro, André Correia, Leandro Oliveira, Natália Garcia, Melina Perussatto, Leandro Fontella, Miquéias Mugge, Jovani Scherer, Jônatas Caratti, as professoras Nikelen Witter e Janaína Teixeira, Helen Osório, que sempre foi uma referência em história agrária, os professores Fábio Kuhn e Benito Schmidt, com os quais cursei disciplinas na UFRGS, meu orientador, João Fragoso, e professores, Manolo Florentino e Roberto Guedes, no Rio de Janeiro, dentre outros, foram parte importante de todo esse processo.

 3. Você tem desenvolvido novas pesquisas? O Arquivo Público faz parte, independente dos males da pandemia, de novos projetos?

Sim. Nesse momento as pesquisas que desenvolvo têm no tráfico, atlântico e interno, de escravos para o Rio Grande do Sul sua ênfase. Se, por enquanto, estou focado em outras fontes, como os registros de batismo e os passaportes de cativos da praça de Salvador que tinham como destino o Rio Grande do Sul, mais à frente pretendo cruzar o resultado dessa etapa do projeto com a pesquisa nos inventários, processos-crime e alforrias de Rio Grande, voltando um pouco às origens das minhas questões, tanto na dissertação, quanto na tese: entender a formação da sociedade brasileira, as formas de produção da nossa absurda desigualdade (um dos nossos traços estruturais mais marcantes, em diferentes épocas, de nossa história) e a influência da escravidão sobre esse processo. Por outro lado, posso dizer que desenvolvo essas novas pesquisas no “meu tempo”. Se o mestrado e o doutorado foram tão corridos (durante o doutorado tive a oportunidade de ficar 9 meses fora do país no sanduíche, entretanto, em razão do meu filho João Pedro ter apenas 6 meses de idade à época e em função da pesquisa que tinha que realizar em arquivos aqui no Brasil, optei por ficar apenas 4 meses), agora desenvolvo as pesquisas, tanto no que diz respeito à transcrição de fontes, à leitura da bibliografia, como também em relação à produção que resulta desse processo, no meu ritmo – sendo mais preciso, meus filhos João e a Maria Luísa são, agora, minha prioridade.

 Vamos ler, na semana que vem, a continuação da entrevista com Marcelo Matheus!

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul