Entrevista com Luana Teixeira - Parte I
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Luana Teixeira graduou-se em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004) e em Letras na Uninter (2020). É doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2016), mestra em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (2012) e Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Entre 2017 e 2019 realizou estágio pós-doutoral na Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente atua como professora visitante na Universidade Federal de Alagoas.
Luana, você pode nos narrar, em linhas gerais, sua trajetória profissional e as principais questões abordadas em seu mestrado e em seu doutorado?
Fiz graduação em história na UFRGS no início dos anos 2000. Em 2004 retornei para Florianópolis e comecei a trabalhar junto ao Núcleo de Identidades e Relações Interétnicas, o Nuer, da UFSC, realizando pesquisa histórica sobre os as Comunidades Remanescentes de Quilombos de Invernada dos Negros e São Roque. A pesquisa sobre São Roque, que está localizada no município de Praia Grande em Santa Catarina, mas tem a história do quilombo ligada às fugas dos escravizados da região de cima da serra, no Rio Grande do Sul, acabou levando à proposição do projeto de mestrado sobre terra e trabalho em São Francisco de Paula em 2016. A dissertação foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História com a orientação da professora Beatriz Mamigonian. Em 2008, finalizei aquele trabalho e passei para o Mestrado Profissionalizante do Iphan na área de preservação ao patrimônio arqueológico em Maceió. Naquela época escrevi livros infantis, realizei produção cultural, trabalhei como consultora da Unesco e na Universidade Estadual de Alagoas. Em 2012, propus um projeto de pesquisa de doutorado sobre terra e trabalho na região do Baixo Rio São Francisco junto ao Programa de Pós-Graduação e História da Universidade Federal de Pernambuco. Minha ideia era desenvolver pesquisa com problemas semelhantes aos do mestrado, focando uma região de produção de gado em um espaço de pequena propriedade. O projeto foi aprovado, mas tive muita dificuldade em acessar a documentação previamente levantada. Na medida em que buscava contornar esse impasse, o Arquivo Público de Alagoas foi reaberto. Ali há uma documentação extensa do executivo provincial, inclusive da Secretaria de Polícia e Tesouraria. Acessando aquela documentação, o tema do comércio interprovincial de escravos começou a se impor à pesquisa e acabei redirecionando-a para essas questões. Enquanto realizava o doutorado, a UFPE firmou parceria com a Universidade Federal do Ceará e com a Université Toulouse para desenvolver o projeto Memórias da Escravidão, no qual pude conectar os estudos em patrimônio cultural, antropologia e história da escravidão. Nesse projeto comecei a investigar os lugares da escravidão nas narrativas sobre os centros históricos. O projeto também proporcionou uma estadia de seis meses na França, o que contribuiu muito para ampliar o meu olhar sobre a instituição universidade e reconhecer as possibilidades de pesquisa fora do país. Em 2017, participei da equipe do projeto Afrodescendentes no Sul do Brasil, que foi uma oportunidade de adentrar o estudo sobre um tema central às questões que envolvem escravidão, comunidades quilombolas e sociedade brasileira e que hoje se reúnem em torno do campo de pesquisa do Pós-abolição. Foram dois anos de grande aprendizado. Ali pude levar a cabo um desejo antigo, que era realizar pesquisa de história social sobre Florianópolis. Além da produção acadêmica, foi gratificante ter conseguido aproveitar os recursos viabilizados pelo Edital Memórias Brasileiras para publicar a obra reunida do Trajano Margarida, poeta negro de Florianópolis do início do século XX. Encerrado o Afrodescendentes, retornei à Maceió, quando fiz segunda graduação em Letras, algo que desde muito tempo havia planejado. O contato com o projeto AfroSantaCatarina da UFSC me fez pensar em desenvolver algo semelhante, relacionado ao turismo histórico em Alagoas e criei o Roteiro Histórico Maceió. Um pouco antes da Pandemia, submeti candidatura a um edital de professora visitante junto ao PPG de História da UFAL. Em novembro de 2020, fui chamada e venho desenvolvendo esse trabalho nesse momento. Um de seus objetivos é colocar no ar o projeto Trânsitos no Brasil Imperial, um banco de dados com as informações sobre as mais de 10 mil pessoas que tiveram o passaporte emitido pela Secretaria de Polícia de Alagoas no século XIX. Esse projeto tem me levado a abrir uma nova porta de estudos, ligado às ciências de dados e novas tecnologias, dialogando mais proximamente com a área da informática. Gosto dessa diversificação de temas. Dá trabalho, mas alimenta o interesse científico e isso é fundamental para manter o ânimo no trabalho de investigação histórica.

Você chegou ao estudo de São Francisco de Paula a partir da participação na equipe que elaborou o laudo de reconhecimento de uma comunidade quilombola, certo? Você pode nos relatar um pouco sobre essa experiência profissional?
Sim, foi isso mesmo, em São Roque. Trabalhar em laudo sócio-antropológico foi um caminho que surgiu para muitos historiadores na primeira década dos anos 2000. Era um momento em que os processos de titulação de terras de comunidades remanescentes de quilombos estavam andando e havia uma grande mobilização pública em torno dessa pauta. Os relatórios eram peças necessárias aos processos para titulação. A coordenação dos relatórios geralmente era feita por antropólogos, mas a necessidade de pesquisa histórica levava a que historiadores fossem chamados para compor as equipes. Vários pesquisadores recém-saídos das universidades puderam passar por essa experiência e creio que foi muito importante para o campo da história de um modo geral. Primeiro porque é um trabalho interdisciplinar com o qual você precisa aprofundar seus conhecimentos sobre os outros campos envolvidos, não apenas das ciências humanas, como também agronomia, geologia, engenharia... Segundo, pois, a experiência de trabalho de campo na metodologia da etnografia é um aprendizado ímpar. E terceiro porque você espacializa a história, a terra, o território e as relações sociais. As comunidades remanescentes de quilombos têm, cada uma a seu modo, um jeito muito próprio de tratar da história da escravidão e essas narrativas não estão impressas nas oficialidades dos textos históricos ou das fontes. Além disso, há uma fragmentação temporal enorme quando a perspectiva sobre a escravidão desce ao rés do chão e passa para a conformação de uma história própria de luta comunitária, passada, presente e futura. Essa perspectiva foi fundamental para minha experiência, foi meu primeiro trabalho de pesquisa como historiadora. E foi com o desafio de buscar mais informações sobre os antepassados da comunidade, escravizados que fugiram das fazendas de São Francisco de Paula, que comecei a realizar pesquisa em arquivos. Foi por esse trabalho que pela primeira vez fui ao Arquivo Público do Rio Grande do Sul.
Em seu mestrado, os documentos do Arquivo Público receberam um lugar de destaque. Qual foi sua importância?
Total. O mestrado foi uma consequência da pesquisa do laudo sócio-antropológico. Em algum momento percebi que era necessário entender a própria organização da produção das fazendas em São Francisco para poder ir mais a fundo na compreensão da resistência escrava. São Roque era narrada não apenas como um lugar de fuga, mas também de produção agrícola complementar à produção de gado e isso era muito intrigante. Quando fui ao Arquivo Público e descobri a seção de inventários post-mortem com grande quantidade de documentos para a região e o período, visualizei uma excelente proposta de pesquisa acadêmica. Os inventários de São Francisco estavam contidos nas caixas de Santo Antônio da Patrulha, então foi necessário abrir todas as caixas para os anos 1850 a 1870 para separar aqueles do atual município. Foi a primeira vez que trabalhei em imersão arquivística. Eu não morava mais em Porto Alegre, então organizei duas temporadas, a primeira de dois meses no inverno e a segunda de dois meses no verão. Entrava no arquivo na hora que abria e saía quando fechava. O horário de pesquisa que vigorava, nos dois turnos, manhã e tarde, foi fundamental para viabilizar a pesquisa. Foram dezenas de caixas abertas para separar os inventários de São Francisco e depois fichar um a um no arquivo mesmo, por que isso era 2006 e a tecnologia da fotografia digital ainda não tinha se difundido. Até mesmo notebook era coisa rara. Foi um trabalho intenso, mas que deu uma boa base para a dissertação. Além disso, especialmente na segunda imersão, já com um bom rol de nomes dos sujeitos que interessavam à pesquisa, fui atrás de processos crimes que envolviam os escravos da região e os trabalhadores pobres. É interessante que processo-crimes e inventários são tipologias documentais que operam dentro de uma mesma lógica de Estado e são, formalmente, muito semelhantes. Mas como conteúdo de informações que propiciam ao historiador são completamente distintos. E cruzá-los naquela pesquisa foi fundamental. Juntos, esses dois conjuntos de fontes representaram uns 80% dos documentos da dissertação, então dá para dizer que aquela pesquisa não teria existido sem o Arquivo Público.
Na próxima semana, leremos a continuidade da entrevista com Luana Teixeira!