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Dia da Consciência Negra e os 10 anos dos Catálogos de Documentos da Escravidão

Publicação:

Cartaz - 10 anos dos Catálogos de Documentos da Escravidão
10 anos dos Catálogos de Documentos da Escravidão - Foto: ASCOM

Sabemos que o acesso aos documentos de arquivo é fundamental à produção de conhecimento e ao exercício da cidadania. Nesse sentido, acreditamos que sempre devem ser celebrados os projetos que aproximam instituições arquivísticas da sociedade, que abrem portas de contato com seus acervos, que fazem mediações qualificadas e sensíveis entre as necessidades de suas usuárias e usuários e o mar de informação que as habita. Hoje, quando se celebra o Dia da Consciência Negra, e não por acaso nesse dia, estamos celebrando também os 10 anos de publicação dos Catálogos de Documentos da Escravidão, que resultaram de um projeto deste tipo, centralmente conectado com demandas de nosso tempo por direito à memória e à história do povo negro.

Catálogos impressos, no dia de lançamento
Catálogos impressos, no dia de lançamento

Este projeto tem sua história, construída a muitas mãos, com ideias convergentes oriundas especialmente de servidores do APERS e de pesquisadores universitários. No começo dos anos 2000, Paulo Roberto Staudt Moreira e Tatiani de Souza Tassoni, assíduos frequentadores de nossa Sala de Pesquisa, iniciavam o mapeamento e descrição das cartas de liberdade de Porto Alegre, trabalho por eles publicado em 2007. Paralelamente e em diálogo com essa iniciativa, em 2006 o APERS lançou dois volumes de catálogo com a descrição das alforrias emitidas nos municípios do interior do estado, e em seguida deu início ao denso trabalho de percorrer sua documentação à procura de registros sobre pessoas escravizadas, levadas aos documentos na condição de bens e herança – presentes em inventários, testamentos e registros de compra e venda –, assim como na condição de vítimas ou réus, em processos criminais.

Da esquerda para a direita: Beatriz Loner, Regina Xavier, Rodrigo Weimer e Paulo Moreira.
Da esquerda para a direita: Beatriz Loner, Regina Xavier, Rodrigo Weimer e Paulo Moreira.

A partir dessa ampla pesquisa, financiada com recursos captados em editais, mobilizando grande equipe de estagiários coordenados por arquivistas e historiadores do APERS, em 06 de dezembro de 2010 teve lugar o evento público de lançamento de mais oito volumes de catálogos, que esse ano comemoram uma década! Conforme notícia veiculada no site do governo do estado à época, mais de 40 pesquisadores colaboraram nessa realização, para a qual “foram inventariados 542,6 mil registros notariais e 73,26 mil ações judiciais, totalizando 615.860 fontes primárias”. O evento de lançamento contou com uma mesa de debates no auditório do APERS, na qual os historiadores Beatriz Ana Loner (UFPel), in memoriam, Regina Lima Xavier (UFRGS), Paulo Staudt Moreira (Unisinos) e Rodrigo de Azevedo Weimer (então doutorando na UFF, hoje APERS e UFRGS) abordaram a importância dos acervos do Arquivo e da iniciativa para o avanço dos estudos históricos. Após as palestras e o debate com o público, os presentes foram convidados a ocupar o pátio da instituição, onde ocorreu a solenidade de lançamento e a confraternização com coquetel, abrilhantada pela apresentação do Coral do CECUNE - Centro Ecumênico de Cultura Negra. 

Coral do CECUNE cantando no pátio interno do APERS
Coral do CECUNE cantando no pátio interno do APERS

De lá para cá, muita coisa mudou. Vale lembrar que nesse intervalo, a historiografia avançou em termos conceituais e teóricos. Ressalta-se o emprego do termo “escravo”, ainda presente nos Catálogos, mas que hoje é rejeitado, por naturalizar o cativeiro, em favor de “escravizado”. Esse também é o período em que floresceram os estudos de pós-Abolição, que tematizam uma história negra que não pode ser reduzida ao cativeiro. Se as experiências de liberdade estão sendo pensadas com uma minúcia e profundidade cada vez maiores, os conhecimentos sobre o escravismo também se ampliaram a partir dos documentos reunidos nos catálogos. Temos certeza de que tais instrumentos de pesquisa foram importantes para impulsionar os estudos a respeito do processo de escravização no Rio Grande do Sul, possibilitando a diversos estudiosos apropriarem-se de forma mais sistemática da documentação.

Esses instrumentos auxiliam a olhar para a história da escravidão de uma forma multifacetada, contribuindo para abordagens recentes: sua observação através dos vieses das relações de gênero, do associativismo, das atividades laborais para além das charqueadas, do estabelecimento de laços familiares, dentre outras. Essas leituras têm contribuído para combater a reificação da população negra na escrita da história do Rio Grande do Sul. O levantamento realizado pode contribuir para muitos novos estudos e suscitar novas discussões. Os catálogos de escrituras de compra e venda, por exemplo, são um material ainda pouco explorado, e exatamente por isso, merecedor de elaboração mais sistemática.

Catálogos sendo manuseados durante o lançamento
Catálogos sendo manuseados durante o lançamento

Esse destaque merece ser feito inclusive para além das áreas da história ou da arquivística, considerando-se que os verbetes que descrevem os itens documentais tornam-se pontos de acesso a documentos que são a expressão de atividades da máquina pública e das relações em sociedade. Os verbetes lançam luz sobre documentos diversos  produzidos em um tempo em que havia escravização no país, e o olhar que os interroga pode ser modulado por múltiplos interesses de pesquisa, seja em estudos econômicos, jurídicos, políticos, linguísticos, etc.

Muitas vezes, pelos desdobramentos de um escravismo historicamente tão recente, às pessoas negras é negado o acesso à construção de suas próprias árvores genealógicas e histórias familiares, devido ao caráter lacunar das fontes escritas. Eis outro mérito dos catálogos: reconectar tramas familiares e histórias de vida, na escravidão e para além dela. Esse tipo de laço tem sido, inclusive, acionado na luta por direitos constitucionais, como é o caso das comunidades remanescentes de quilombos.

Por tudo isso, acreditamos que faz muito sentido comemorar os 10 anos dos Catálogos nesse momento, aliado à celebração da Consciência Negra, especialmente em tempos nos quais, por um lado, a expressão criminosa do racismo toma lugar “em praça pública”, e por outro, pessoas pretas reafirmam que “vidas negras importam”, avançam em sua organização e na ocupação dos espaços de poder. A nós, como Arquivo Público, nos resta a alegria e o orgulho de estarmos contribuindo para importantes demandas sociais!

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