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Todos contra o médico? A repercussão nos jornais do Caso de Miguel da Patta

Publicação:

Miguel de Patta
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Por Luiza Ribeiro Moraes/ APERS

Na noite de 29 de março de 1923 em Anta Gorda foi possível ouvir gritos e tiros em frente ao hospital da cidade, iluminado por um clarão proveniente das armas de fogo incansavelmente disparadas e de um incêndio que logo tomou conta do lugar. O motivo para tal melodia era um verdadeiro levante da população contra o morador da casa de saúde: o médico italiano Miguel de Patta. Esse acontecimento de grandes proporções foi resultado de uma série de desentendimentos entre a vítima do motim com o padre da cidade, chamado Hermínio Cattelli, além da insatisfação da população diante de denúncias contra o doutor, verdadeiras ou não, de defloramento, agressão física e negligência. Esse caso já está publicado em detalhes no blog do APERS, bem como na página do Instagram (@arquivopublicors).

Para ler o primeiro texto sobre o caso acesse aqui

O objetivo desta segunda publicação, então, é analisar a repercussão deste episódio tão relevante para os jornais da época. Nos autos do processo constam 27 periódicos em português e em italiano que publicam não somente sobre o motim do dia 29 de março, mas também sobre a vida do médico (a participação dele como doutor da infantaria na Primeira Guerra Mundial, sua vinda no Brasil, sua relação com a família). Além disso, há descrições de denúncias contra o padre e outros supostos participantes do crime, incluindo o intendente de Encantado, e as consequências para o distrito diante do ”atentado inominável [...] do povoado de Anta Gorda”. 

Os posicionamentos são variados: alguns fazem acusações contra o “fanatismo religioso” do levante, outros contra diversas autoridades do distrito, algumas reportagens estampam a capa da edição, enquanto outras são notícias breves nas colunas criminais, além  do número de participantes do levante variar de 100 a 800 pessoas dependendo do jornal que a publica. Entretanto há uma constante: a defesa da inocência de Miguel de Patta, homem de grande prestígio social e influência. Assim, se a cidade estava “toda” contra o médico, é possível afirmar que os jornais estavam praticamente “todos” contra o padre e os participantes do motim. 

Jornal O Mundo, edição 18 de fevereiro de 1925
Jornal O Mundo, edição 18 de fevereiro de 1925
O jornal Correio da Manhã, por exemplo, não poupou palavras em mais de uma edição contra a violência do dia 29 de março, descrevendo-o como “a selvageria de Anta Gorda” e chamando os seus participantes de “bandidos da pior espécie”. Além disso, aponta a participação do padre como “instigador do crime e autor intelectual deste” e chama-o de “crápula e imoral - perjuro e traidor de Cristo imaculado”,  que durante o julgamento “veio com suas ovelhas”, ou seja, aqueles que defendiam-no, para evitar uma sentença. 

Contudo, Hermínio não foi o único acusado de ser o "cabeça” do crime: em reportagem intitulada “O banditismo do intendente Virgílio da Silva”, o administrador do município de Encantado é acusado de participar ativamente no plano para assassinar Miguel de Patta. Na realidade, o jornal denuncia que estiveram presentes na noite de 29 de março “a famigerada família dos Silva, com seus irmãos, cunhados, sub-intendente, sub-delegados, juízes distritais, comissários, praças da polícia municipal etc.” A insatisfação de alguns setores da sociedade com a vida política da cidade parece ter encontrado respaldo com esse grande acontecimento em Anta Gorda, distrito de Encantado. 

Não somente o Correio da Manhã  demonstrou seu desgosto com a figura de Virgílio e com outras autoridades da região. Na edição de 15 de fevereiro de 1925 do jornal A Imprensa classifica o intendente como um “arbitrário e prepotente, jogador inveterado, tido como um flagelo para o lugar [...]”. A matéria alerta que se não forem os criminosos exemplarmente punidos, o país será visto “[...] lá fora, [como] uma terra de facínoras sanguinolentos e temíveis”. Outra estratégia empregada pelo editorial em benefício de Miguel de Patta e em denúncia dos políticos que não eram afeiçoados.

Miguel de Patta, personagem do enredo
Miguel de Patta, personagem do enredo

Em destaque a coluna Seção Livre
Em destaque a coluna Seção Livre

A inocência do médico segue sendo defendida ferozmente pelos jornais da época. Ele é descrito como “[...] membro de uma importante família italiana, que é modelo de virtudes: amigo dedicado e serviçal, esposo exemplar, irmão amantíssimo”, chega em outras edições a ser qualificado como um herói. Os jornais em italiano como “Stafetta Riograndense”, “Il Corriere D’Italia” e “Il Pungiglione” seguem o mesmo raciocínio, inclusive, alguns atentam sobre a persistência do preconceito de brasileiros populares contra estrangeiros intelectuais. 

Jornal Correio da Manhã
Jornal Correio da Manhã
Jornal 7
Jornal Correio da Manhã, outubro de 1923

Outro ponto contínuo nas matérias é a citação da influência de Miguel de Patta para essas publicações, mais de uma vez é dito que “amigos ilustríssimos do médico” entraram em contato com os redatores dos jornais dando suas opiniões ou que esses mesmos escreveram as reportagens que constam nos autos do processo. A exemplo, um dos advogados do médico, Dr. Sophia, assina uma das matérias do Correio da Manhã e outra matéria neste mesmo jornal é encomendada por Alfredo Gigante, mais um advogado, que, inclusive, é descrito como “valoroso tribuno e formidável argumentador” em outra edição.Não só a influência do médico italiano é possível de se perceber na tinta das notícias. O motim de Anta Gorda suscitou diversos comentários racistas, altamente morais e que questionavam a religiosidade da população. Na edição n° 515 do jornal Última Hora a matéria sobre o caso trazia como título um questionamento: “O fanatismo religioso ao serviço do crime?”. Logo abaixo denunciava que o acontecimento “nos confunde com as tribos da África (sic)”.A comparação com as culturas do continente africanos, classificadas pelos redatores de selvagens, não foi exclusiva desse jornal. A edição de 14 de abril de 1924 do jornal O Mundo encerrava a descrição do crime com a seguinte frase: “Mas que antas [são] [...] os caricatos sobas africanos da ‘Anta Magra’ [o jornalista faz uma ironia com o nome do distrito onde ocorre o caso e compara os supostos mandatários do motim com chefes de povoamentos do outro continente]”. Assim, a presença de camadas populares da sociedade gaúcha no tiroteio e incêndio contra o hospital deu respaldo para essas comparações que buscavam desqualificar seus participantes. 

Jornais e revistas são importantes fontes para compreender a mentalidade da época em que são realizados, mas quem tem voz nesses materiais? Entre anúncios de remédios para “cura das doenças do útero”, entre notícias sobre acontecimentos internacionais, como “a China contra os sovietes” ou “Mussolini e Baldwin desentenderam-se?”, entre notas de falecimento e matérias fazendo “ligeiras considerações sobre o ocultismo” é possível perceber que apenas o médico teve voz para descrever o motim de Anta Gorda.  Se no distrito estavam todos furiosos com o italiano Miguel de Patta, com certeza nas opiniões da elite intelectual o contrário ocorria: eram políticos e policiais corruptos, juntos com selvagens populares, fanáticos religiosos e participantes do clero, os verdadeiros culpados.

Jornal Correio da Manhã
Jornal Correio da Manhã

Miguel de Patta
Mais um jornal que destaca o Caso do médico italiano Miguel de Patta

Miguel de Patta
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Miguel de Patta
O caso destacado pela na mídia jornalista

Miguel de Patta
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Processo nº 582. Comarca de Lajeado - Vara Cível e Crime -  Crime - 1923.

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