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Entrevista com Natália Garcia Pinto – Parte I

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APERS Entrevista
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Natália Garcia Pinto é professora substituta na Universidade Federal de Pelotas. Cursou especialização em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2010), mestrado na mesma instituição (para acessar a dissertação, de 2012, clique aqui) e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (para acessar a tese, de 2018, clique aqui). É bacharel em História pela Universidade Federal de Pelotas (2007) e atualmente cursa Formação Pedagógica para Graduados não-licenciados (Instituto Federal Sul-Riograndense)

Natália, por quais motivos você se interessou pelo estudo da demografia e dos laços familiares e de compadrio entre os escravizados?

O meu interesse surgiu quando ingressei na especialização cursada na UNISINOS sob a orientação do professor e Doutor Paulo Moreira e das discussões ofertadas no grupo de pesquisa que participava com os demais colegas na época. Dos debates construídos em torno da família de escravizados e do boom de trabalhos que estavam sendo publicados (artigos, dissertações e teses) no país sobre a temática, despertou-me o interesse de pesquisar sobre os laços familiares e de afetividade naquele passado no município de Pelotas. Investiguei o que havia de publicação sobre o tema de História social da escravidão para a localidade e constatei com certo regojizo que poderia então problematizar sobre o tema discutido. Em minha dissertação, A benção meu compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas, 1830/1850, desenvolvi algumas indagações sobre como era a família dos escravizados especificamente nessa sociedade escravista. O que ela tinha de singular ou não com outros estudos que abordavam o mesmo tema que pesquisava? Nesse sentido, desenvolvi uma investigação que priorizou a análise das relações familiares e afetivas de escravizados e libertos (apesar do enfoque ter sido mais com os primeiros), dando ênfase aos laços sociais confirmados pelo compadrio.

Tentei problematizar a respeito do processo de socialização em torno da comunidade cativa negra local e de pensar como se reproduziam as relações hierárquicas entre os escravos e os demais setores sociais, através dos laços amalgamados na pia batismal. Outro ponto que elucidei em minha dissertação foi pensar o papel crucial da família de escravizados no projeto de liberdade, enfocando de maneira ainda tímida a questão da etnicidade e de gênero no mundo do trabalho. Mas, para dar conta dessas indagações, a demografia e o estudo dos laços familiares via o compadrio foram de suma importância. Pois, para compreender a dinâmica social e escravista da cidade no período do auge do tráfico de seres humanos (já que imperava o tráfico ilegal no Brasil) até o fechamento do mesmo no império, precisei levantar dados sobre a estrutura de posse de escravizados e mapear suas famílias na documentação coligida como, por exemplo, os inventários post-morten e os registros de batismos, óbitos e de casamentos. Foi um trabalho árduo, uma vez que a estrutura de posse de todos os senhores escravistas locais ainda não tinha sido feita, pois sempre se privilegiou o estudo da posse apenas dos senhores charqueadores.

Defendo então que meu trabalho, através do uso da demografia, permitiu apontar dados que anteriormente, na historiografia regional (local), não eram vislumbrados, tais como a existência de família de escravizados tanto nas escravarias grandes, médias e pequenas. A posse escrava estava pulverizada em diferentes senzalas na sociedade escravista pelotense, não existindo apenas na economia do charque, mas também em outras atividades econômicas dos senhores locais. Nos casos abordados pela demografia pude constatar um processo endógeno de compadrio muito forte, em que algumas figuras de prestígio da comunidade de escravizados se destacavam como padrinhos ou madrinhas de prestígio na pia batismal, como o Antônio, mina e barbeiro e a Delfina, mina. Pela demografia também foi possível verificar que a família de escravizados em Pelotas era matrifocal e não nuclear como no Sudeste, e que essa agia como matriz para resgatar parentes do infortúnio da escravidão, especialmente as mulheres, nas figuras de mãe e avó. Por intermédio da ligação nominativa de fontes e do estudo intenso dos dados coligidos da demografia, constatei uma diversidade de grupos de africanos nas senzalas pelotenses, as relações étnicas em torno do casamento, compadrio e na luta pela carta de alforria. Assim sendo, ao longo do percurso da escrita da dissertação, a ideia original, circunscrita à análise demográfica das escravarias, permitiu a possibilidade de examinar as relações de compadrio (não só entre os proprietários do charque), contribuindo para rastrear em detalhes as relações sociais entre os grupos de parentesco entre escravizados, libertos e livres. Apesar de, muitas vezes, a demografia ser pintada como “fria” (e assustadora) e de me afogar em vários nomes com o cruzamento qualitativo de diferentes fontes, foi possível apontar a existência de afetividade e de laços familiares na sociedade escravista pelotense, sendo em sua grande maioria, uma família matrifocal e não nuclear.

Historiadora Natália Garcia Pinto
Historiadora Natália Garcia Pinto
Aparentemente, temos um prosseguimento cronológico entre sua dissertação e sua tese. No entanto, no caso do segundo trabalho há um maior destaque para casos exemplares e trajetórias. Então, o que você vê de continuidade e de novidade entre uma pesquisa e outra?

Sim, houve um prosseguimento no período. A tese intitulada Gerações de senzalas, Gerações de liberdade, trouxe um enfoque mais apurado sobre as experiências de escravidão e liberdade no período de 1850 a 1888. O que vejo de continuidade de um trabalho em relação a outro... Vejamos. A continuidade foi de que a família de escravizados teve papel crucial nos projetos de liberdade, com um enfoque também ligado aos laços étnicos, como foi apontado inicialmente na dissertação. Neste trabalho, já havia apontado a importância da família na obtenção da liberdade para si ou um familiar, que esse movimento de luta e de resistência era calcado especialmente, também, em laços étnicos. No primeiro período da investigação, apontou uma expressiva presença de africanos e africanas da África Central pelo estudo da demografia nos inventários, porém quando ia abordar a demografia da liberdade nas cartas de alforria, constatei que a maioria dos africanos que conseguiam  passar a “porta estreita da liberdade” eram os do grupo da África Ocidental (Minas, Nagôs e Geges). Abordando a categoria de gênero entre 1830 a 1850, as mulheres africanas desse grupo étnico conseguiam em maior vantagem a liberdade do que seus parceiros étnicos, pagando consideráveis quantias por suas liberdades.

A novidade na tese foi que, após 1850, não são mais as mulheres africanas afro-ocidentais que dominavam o mercado da liberdade, pelo contrário, foram os homens africanos de nação mina, nagô e gegês. Mesmo com o processo de crioulização após a década de 1870 constatado em minha pesquisa na localidade estudada, os africanos da Costa Ocidental sobrepujavam a demografia da liberdade. E quem eram esses afro-ocidentais? Este foi o ponto auge da minha tese, um ponto crucial de discussão na historiografia, visto que o enfoque sempre é dado às mulheres africanas do grupo étnico da África Ocidental. Todavia, apenas com o cotejo da documentação das cartas de alforrias não seria possível investigar a fundo esses sujeitos. Foi necessário o cruzamento de fontes (inventários, registros paroquiais, testamentos, processos criminais, termo de bem viver, e etc.). Aliado a esse cruzamento de informações na documentação consultada, escolhi abordar trajetórias de indivíduos e coletivas para compreender esse processo da experiência da escravidão e da liberdade. As trajetórias de africanos ocidentais (homens e mulheres) permitiram investigar as experiências sociais, desde a vida em cativeiro até a liberdade (e a manutenção da mesma). O grande problema da escolha de trabalhar com as trajetórias é a questão presente das lacunas dos sujeitos perseguidos, ainda mais em se tratando de sujeitos subalternos, como no caso dos africanos libertos, objeto da minha tese. A tentativa de elucidar esse problema foi de perseguir vestígios de outros personagens semelhantes ao biografado no afã de tentar compreender as circunstâncias e experiências que vivenciaram naquele passado. As trajetórias analisadas na tese me permitiram criar e recriar contextos diversos, compondo vários cenários plausíveis sobre as experiências de escravidão e liberdade. As trajetórias apontaram excepcionalidades e normalidades. Embora utilizando o enredo de uma trajetória de uma africana, como por exemplo, a Catarina, africana, mina, que tinha suas particularidades, visto que tornara-se uma proprietária de casas, emprestava dinheiro a outros companheiros étnicos para comprarem a carta de liberdade, uma pequena escravista entre o seu grupo, a trajetória dessa africana tinha a marca da individualidade. Porém, também era coletiva, pois partilhava com outros africanos libertos a precariedade da vida em liberdade, a negociação pelo papel de manumissão, a travessia atlântica, e tantos outros aspectos.

Embora Pelotas tenha recebido o maior número de escravizados vindo da África Central Atlântica, os “Minas” dominavam o mercado da conquista da liberdade, então por meio das trajetórias ou fragmentos do que consegui costurar pelos vestígios documentais tentei recriar a história da comunidade negra liberta local, quais os mecanismos acionados para a sobrevivência em uma sociedade marcada pela desigualdade e pautada pelo racismo. Pelas trajetórias foi possível averiguar a reconstrução de suas vidas através dos laços afetivos que tinham, com quem se relacionavam, amealhavam algum patrimônio (se sim, de quais os bens que tinham), com quem casavam, para quem deixavam seu patrimônio, para seus descendentes ou a comunidade étnica. A vida ou a sobrevivência em liberdade (ou a sobrevivência) destes indivíduos foi reorganizada e reelaborada na diáspora na América em torno do parentesco étnico, lutando pela liberdade e por espaços de cidadania dentro da escravidão brasileira.

Vamos prosseguir com a entrevista com a historiadora Natália Garcia Pinto na próxima semana!

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