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Entrevista com Vinícius Pereira de Oliveira - Parte II

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na semana passada, conhecemos um pouco da trajetória de pesquisa de Vinícius Pereira de Oliveira, assim como do papel do acervo do Arquivo Público em seu trabalho. Vamos ler a continuidade de sua entrevista!

Muitos trabalhos de história social, nos últimos anos, tomam casos particulares como fios condutores para explorar problemas históricos mais amplos. Entretanto, quando você fez seu mestrado, há quinze anos, isso não era exatamente comum. Você pode nos contar um pouco mais sobre como chegou ao Manoel Congo e quais questões esse personagem suscitou?

O Manoel Congo apareceu na documentação já na fase final da minha pesquisa, quando eu já estava com o primeiro capítulo da dissertação fechado. Foi necessário um movimento de reorganização da minha escrita para dar conta do uso da sua trajetória de vida. De fato, não era tão comum o uso de casos particulares como porta de entrada para contextos mais amplos, mas já existiam diversos trabalhos como o Dom Obá II D’África, do Eduardo Silva, o trabalho sobre o Mestre Tito, da Regina Xavier, as pesquisas sobre a Liberata e o Antônio Pereira Rebouças feitas pela Keila Grinberg, dentre outros. E na verdade minha dissertação não se propõe a ser uma biografia, e sim uma abordagem social sobre as experiências dos escravizados narrada a partir da trajetória de um personagem que, pela especificidade de sua inserção na sociedade escravista brasileira, acabou por gerar um processo-crime riquíssimo em que ele, o Manoel Congo, é interrogado e levado a falar sobre fragmentos de sua trajetória, desde a África. Falo em especificidade de sua inserção, mas que não seja entendido como algo raro ou peculiar. Assim como Manoel, muitos outros africanos vieram depois do fim do tráfico em 1850 e igualmente vivenciaram o enquadramento jurídico de “africanos livres”, termo inclusive irônico, pois mesmo o Estado brasileiro reconhecendo a ilegalidade jurídica de sua condição de escravizados, esses africanos tiveram que permanecer sob tutela por anos, prestando serviços, para que lhes fosse “ensinado” a serem bons trabalhadores e pretensamente despidos de suas culturas de origem, vistas como perigosas e inferiores. Mas a trajetória desses “africanos livres” também foi semelhante à de muitos outros escravizados, crioulos ou africanos, já que, como Manoel, muitos viveram suas vidas sob a condição da escravização. E justamente por essa especificidade, a trajetória do Manoel serviu de mote para abordar muitos temas que a historiografia social da escravidão já havia pautado e, dessa forma, ampliar a análise para as relações sociais de dominação e resistência em São Leopoldo, no berço das políticas imigrantistas no momento.

Um aspecto em particular me fascinou neste processo-crime: a informação, prestada por Manoel Congo, de que ele já sabia, ainda em sua terra natal, da ilegalidade da escravização no Brasil para africanos vindos da África naquele contexto pós 1850, e dessa forma do seu direito de procurar as autoridades da província para reivindicar sua liberdade. Manoel explicitou algo que está em alta na historiografia dos dias de hoje: a dimensão atlântica das experiências sociais, a circulação de ideias e informações entre as margens deste oceano. Lembro que então reli o artigo “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”, do Peter Linebaugh, e também o livro “Um rio chamado Atlântico”, do Alberto da Costa e Silva, e que isso tudo me abriu o interesse para o campo conceitual da História Atlântica. O meu doutorado acabou sendo resultado dessa busca por pensar a cultura marítima atlântica de resistência, e para isso me debrucei sobre as experiências dos marinheiros, livres e escravizados, na cidade portuária de Rio Grande no século XIX. O estudo desses personagens que viviam entre as águas e a terra firme era um tema que já acumulava alguns trabalhos importantíssimos como os do Linebaugh, do Marcus Rediker, do Jaime Rodrigues, do Álvaro Nascimento, mas que no Rio Grande do Sul havia apenas sido parcialmente abordado pelo Paulo Moreira.

A que você atribui o relativo silêncio historiográfico a respeito dos marujos?

Historiador Vinícius Pereira de Oliveira
Historiador Vinícius Pereira de Oliveira
Na década de 1960 o historiador José Honório Rodrigues já havia manifestado o seu estranhamento com o fato de que um país dotado de uma costa marítima vastíssima e de uma ampla rede de rios carecesse de maiores conhecimentos sobre sua história naval. De fato, o papel fundamental desempenhado pela navegação na formação do país contrasta com o vazio que se verificou, durante muito tempo, na historiografia brasileira sobre as marinhas mercante e militar e sobre os diversos trabalhadores vinculados a estas (marinheiros, remadores, calafates, construtores de embarcações), bem como sobre os pescadores. Durante um bom tempo, o que se produziu a respeito da história naval era advindo de integrantes do oficialato da marinha de guerra e vinculado à perspectiva de enaltecimento dos feitos militares desta força e de seus grandes vultos históricos, do seu papel heroico na manutenção das fronteiras nacionais, etc, o que acabou por gerar mitos que não se sustentam à luz das novas pesquisas embasadas teórica e empiricamente. Igualmente criou uma narrativa idealizada sobre a vida embarcada, no sentido de que baixa marinhagem e o oficialato formavam uma família unida e supostamente harmônica. É justamente esta visão que novos estudos buscam contrapor ao abordar as tensões presentes na formação das marinhas, seu cotidiano de trabalho, os conflitos oriundos de relações de poder, classe, condição jurídica e cor no trabalho embarcado.

Mas também me pergunto sobre o porquê desse relativo silêncio sobre os marujos. Talvez por ser um grupo que tinha sua vida pautada pela circulação no espaço tenha tornado a sua visualização nas fontes mais difícil. E ainda a atribuição de um forte estigma de que eram trabalhadores propensos aos crimes, às desordens, às brigas, ao alcoolismo,etc, tenha de alguma forma incidido neste desinteresse em tomá-los como objeto de pesquisa. Mas acho que isso não explica tudo. É uma questão que eu ainda me pergunto.

De que formas o conceito de “cultura política” contribuiu para entender as concepções e as motivações dos marinheiros?

Este conceito me foi útil para pensar os significados das experiências contestatórias dos trabalhadores náuticos, para me auxiliar a problematizar o conjunto das práticas marujas frequentemente classificadas à época como mera indisciplina, transgressão ou insubordinação frente aos seus comandos embarcados e às autoridades em terra. Ações supostamente fruto da origem cultural ou racial perigosa destes trabalhadores, de suas personalidades degeneradas, de um banditismo inato ao grupo ou da sua inadaptabilidade ao mundo do trabalho.

O conceito de cultura política me foi útil, então, para pensar que aquilo que era taxado como ato de transgressão poderia se traduzir de significados distintos para seus agentes. De forma que tais ações podem ser vistas como práticas contestatórias com significados alicerçados em noções advindas de uma cultura política marítima gestada no dia a dia do trabalho. Existiam projetos distintos que estavam se confrontando nos conveses e nos ambientes portuários, diferentes expectativas postas pelos distintos agentes envolvidos com a navegação mercante e militar atlântica quanto à atividade embarcada: o Estado, os comandos navais militares e mercantes, os donos de embarcações, os senhores de escravizados marujos e os próprios marinheiros. Muitos dos conflitos verificados eram decorrentes da incompatibilidade destas expectativas. Se para os comandos embarcados a estada em terra, por exemplo, era momento em que os esforços das suas tripulações deveriam estar voltados à efetivação de seus projetos comerciais e ou militares, para baixa marinhagem era momento de acentuada expectativa em relação à cidade e aos possíveis desdobramentos materiais e imateriais de sua sociabilização.

A isso se soma o fato de que o cotidiano do trabalho marítimo, tanto na Armada como na marinha mercante, era marcado por uma diversidade de restrições decorrentes da constante mobilidade espacial, do distanciamento das relações sociais de origem, da alimentação deficitária, da constante exposição aos riscos advindos do confronto com a natureza e a problemas de saúde. O trabalho marujo era fisicamente rigoroso e ocorria sob sistemas hierárquicos e disciplinares rígidos e violentos. Este conjunto de fatores estava na base da aversão socialmente disseminada à vida embarcada no Brasil, o que implicava na dependência do recrutamento forçado e do trabalhador escravizado para a formação das tripulações da Armada Imperial e da marinha mercante. Dependência que, por sua vez, empurrava grandes contingentes de trabalhadores de forma compulsória para o trabalho no convés, constituindo-se assim em mais um elemento de tensão e contradição.

Frente a esse ambiente de trabalho pouco atraente, os marujos elaboraram leituras políticas originais, uma cultura alicerçada na carga de experiência anterior que cada indivíduo comportava e nas vivências compartilhadas a bordo. Cultura essa que informava sobre o tolerável ou não na relação com a autoridade embarcada, sobre concepções quanto a direitos e deveres e sobre o legítimo e o ilegítimo no mundo do trabalho. Era uma cultura que buscava resguardar determinados valores de trabalho e descanso, os quais os comandos navais e o estado brasileiro nem sempre estavam dispostos a aceitar, ao mesmo tempo que questionava os níveis de exploração e disciplina fortemente impostos.

É a partir destes antagonismos que devemos captar os sentidos de muitas situações de conflito que o mundo do trabalho embarcado comportava. A embarcação e o mundo do trabalho náutico se mostram, assim, como um espaço de lutas e contradições. A historiografia tem apontado a dimensão atlântica das experiências e da cultura dos homens do mar. Assim é possível tomar o Atlântico como um espaço de lutas políticas permeado de contradições.

De que formas sua experiência como pesquisador se desdobra em sua prática como educador?

Talvez o maior impacto tenha sido na atenção quanto à necessidade de uma história vista de baixo na sala de aula, não só no conteúdo como na forma de narrá-lo. Um desdobramento disso, penso eu, é a tentativa de explicitar aos alunos que contar história é, em certa medida, uma disputa de narrativas, no sentido de que é uma opção por um lugar político e social a partir do qual se olha o passado e o presente.

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