Entrevista com Tiago Luís Gil - Parte II
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Na semana anterior, o historiador Tiago Luís Gil nos contava sobre sua trajetória de pesquisa, incluindo seus trabalhos de mestrado e doutorado. Discutiu também a influência da abordagem micro-histórica e o potencial do acervo do Arquivo Público - acesse a primeira parte da entrevista aqui. Vamos ler a continuação de sua entrevista?
4) Como você se interessou pelo geoprocessamento de espacialidades da América Portuguesa? Você pode nos contar sobre a origem do projeto do Atlas Digital da América Lusa?
Durante o doutorado eu pesquisava o crédito, fenômeno que, no meu entender, guarda relação com a demografia e, mesmo, com a geografia, pois as informações não se distribuíam igualmente no espaço. Eu precisava de um mapa com as vilas da época e esse mapa simplesmente não existia. Naquele momento acabava de ser lançado do Google Earth, algo que me parecia fascinante. Pensei que eu precisava de um Google Earth para a época. Quando fiz o doutorado-sanduíche em Florença, segui um curso oferecido pela Marguerita Azzari, da geografia da UNIFI, pioneira no uso de geoprocessamento na Itália e interessada em cartografia histórica. Voltando ao Brasil, fui atrás de ferramentas para a tese e consegui resolver meus problemas. Contudo, o problema maior continuava: faltava um acervo de dados sobre as localidades coloniais que pudesse ser simplesmente “baixado” para uso. Quando entrei na UnB, alguns meses depois da defesa, resolvi aproveitar o momento de amplo financiamento do ensino superior e criar essa ferramenta que é o Atlas Digital da América Lusa. Por conta disso, acabei me aproximando de outros projetos pioneiros no geoprocessamento histórico, como o Paulicéia, do Himaco, na Unifesp, onde o Luis Ferla criou um belíssimo grupo de trabalho. Desde então nos encontramos em diversos eventos e reuniões de trabalho e acabamos incentivando uns aos outros a novas aventuras.
5) Ao tentar situar em mapas, de uma forma muito artesanal, as localizações de alguns referenciais socioculturais de comunidades quilombolas, ou até de territorialidades LGBTQIA+ de Porto Alegre, tive algumas dificuldades para situá-las com exatidão. Imagino que no período colonial os obstáculos possam ter sido ainda maiores. Com qual grau de precisão vocês têm trabalhado? Como lidam com localizações aproximadas?
É sempre artesanal, ainda que não pareça. É sempre um trabalho que envolve muitas decisões e sempre destacamos isso nos bancos de dados que criamos. Não é fácil mesmo. Contudo, a diferença de escala “continental”, como no caso do Atlas, para uma escala urbana, como as territorialidades LGBTQIA+ em Porto Alegre, acaba trazendo ainda mais dor de cabeça. Uma coisa é você marcar uma vila com uma margem de erro de 5 quilômetros. Olhando o conjunto da América Lusa, o ponto ficará no mesmo lugar, pois o tamanho do “ponto” usado para representar acaba eliminando a diferença. Contudo, numa cidade, 5 quilômetros pode significar estar já em outra cidade ou um um bairro completamente diferente. Nesses casos, talvez o uso de “manchas”, como aquelas produzidas por mapas de calor (algoritmo de kernel) possa ajudar a diminuir a sensação de precisão, além, é claro, de usar feições (pontos, linhas e polígonos) com uma taxa de transparência maior para casos mais imprecisos. No nosso projeto, usamos até 6 classes de precisão, baseada no raio possível de erro da marcação. Isso é importante para situar os objetos uns em relação aos outros, pois essa relação existia, mas, em geral, evitamos tirar conclusões que demandem uma precisão muito grande e quase sempre nossas análises são efetuadas na escala continental. Quem tem um trabalho muito bacana com espaços urbanos é o Carlos Valencia Villa, em “Ao longo daquelas ruas”.
Coisas muito diferentes recebem esses rótulos. Acho ruim que estas discussões tenham virado moda, pois isso tem um efeito sempre muito destrutivo e epistemologicamente reprovável. O que faço é uma história que tenta tirar proveito do computador, pensando sempre em armazenamento e processamento dos dados, especialmente este último. É um tema clássico, que surge durante o auge da história social, da qual me considero tributário. Entendo que muitos que falam em história digital e humanidades digitais estão pensando em novas formas de comunicação e internet, tema sobre o qual não sei quase nada, para não dizer “nada”. Uso estes recursos computacionais, pois sou preguiçoso e acho que o computador pode fazer muito bem algumas tarefas repetitivas. Agora mesmo estou criando um programa de computador em python que pretende “varrer” teses, dissertações, artigos e livros digitais (em formato PDF) para extrair automaticamente índices de nomes, datas, lugares, temas e referências bibliográficas, com a ideia de conectar tudo isso e criar um gigantesco banco de dados que permitirá a busca por certos personagens, ou períodos, lugares, temas, obras ou tudo isso junto usando toda a historiografia disponível em PDF através deste sistema. O programa já está pronto e funcionando, mas ainda preciso “alimentá-lo” com muitos trabalhos para que coisas possam ser encontradas. Ele não trará resultados “analisados”: ele trará indicações bibliográficas que permitirão aos historiadores, estes sim, encontrar conexões e regularidades. No futuro, pretendo também inserir fontes transcritas, permitindo robustecer o sistema.
7) Na sua opinião, de que formas as ferramentas digitais auxiliam na gestão, preservação e difusão de acervos arquivísticos?
Confesso que meus poucos conhecimentos desse tema me impedem de dizer além do óbvio: que a publicação online dos acervos facilita a vida do historiador, democratiza o acesso, reduz o contato e a deterioração dos originais e abre espaço para que pessoas de lugares muito diferentes conheçam as mais variadas fontes, por tipo, lugar ou data. Antigamente, estudávamos o que havia nos acervos locais e agora os alunos podem sonhar com fontes muito distantes das suas realidades. E acredito que isso apenas alerta para a importância dos acervos, sem “competir” com a versão física dos mesmos, ou seja, acredito que os arquivos serão cada vez mais demandados, mesmo estando inteiramente online. Seria ótimo poder ter todo o APERS disponível. Já pensou se todas aquelas escrituras fossem inseridas no programa que estamos criando? Teríamos todos os nomes, lugares, datas e temas das escrituras disponíveis em um toque. Espero que esta conversa tenha sido interessante.