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Entrevista com Natália Garcia Pinto – Parte II

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APERS Entrevista
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Na semana anterior, a historiadora Natália Garcia Pinto nos explicou sobre as temáticas de sua dissertação e de sua tese, em suas continuidades e inovações. Confira o restante da entrevista!

Como você se posiciona no debate historiográfico que coloca a constituição de famílias como aspecto pacificador ou de resistência na constituição de comunidades escravas?

Meu posicionamento no debate historiográfico é de que a família de escravizados é um aspecto de resistência frente ao sistema escravista. Acredito que a família de escravizados, pensando especialmente na minha dissertação de mestrado, ao analisar os padrões de compadrio entre a comunidade negra, consegui captar indícios de algumas tensões ou desvios (não sei esta é palavra exata) de laços de parentesco das propriedades senhoriais e com a comunidade negra e liberta, apontando para um campo de possível negociação frente aos desejos de entrelaçar laços de afetividade com quem muitas vezes não pertencia ao bando senhorial da senzala que pertenciam. É provável que a família escravizada em Pelotas tenha sido fortemente marcada por momentos de conciliação e constatação do sistema, mas muito mais instituição compromissada com a comunidade negra do que com a casa grande. A “paz” poderia ser um artifício utilizado pelos familiares escravizados para angariarem benefícios e incentivos para manterem-se vivos enquanto comunidade (que não era feita apenas de amizades, mas também gestada por conflitos). Um destes incentivos senhoriais arrancados pela família dos escravizados foi a alforria dos parentes, que ruía paulatinamente a estrutura do sistema escravista. Além disso, a carta de liberdade, como apontei tanto na dissertação como na tese, foi tema crucial para entender as estratégias familiares e identitárias dos sujeitos escravizados. E a luta deles para libertar um familiar do jugo do cativeiro. Família é um elemento de resistência e de sobrevivência daqueles homens e mulheres que vivenciaram a escravidão e a liberdade.

Você não acha que, talvez, as famílias matrifocais podem estar superestimadas em pesquisas sobre o tema, pelo sub-registro de ramos masculinos de famílias de escravizados?

Sim, acho. Pensei muito a respeito enquanto escrevia a minha dissertação e depois de concluir o trabalho sempre me questionei sobre o esse fato. Então, quando da feitura do trabalho me indagava, principalmente no que tange à questão do projeto coletivo da liberdade. É factível que essas famílias de escravizados não fossem apenas constituídas pela mãe e as crianças, que provavelmente os pais pudessem conviver ou não diariamente. Mas como comprovar empiricamente isto? Mesmo com o cotejo de uma variada documentação isso foi dificílimo de fazer. Uma lástima. Poucos, diria até raros, os casos que confrontando os documentos pude descortinar esse questionamento que me fizeste. Em um raro momento de incansável pesquisa e perseguição dos indivíduos investigados, tinha encontrado a liberdade de um dos filhos da liberta Sofia nas cartas de liberdade que estão sob custódia do APERS. A primeira impressão como historiadora foi estipular com cautela que a liberdade daquele membro familiar foi agenciada pela mãe liberta. Todavia (e ainda bem), um dia, li um processo-crime do assassinato de Sofia pelo seu amásio José, um africano, carneador na charqueada de José Antônio Moreira, que, imbuído de ciúmes e de cólera pelo excesso de paixões, matou a facadas a liberta Sofia, pois ela teria trocado seus braços por outro, e mais, tinha dado as suas economias para libertar outro homem. O desenrolar do interrogatório do africano José traz elucidações pertinentes, pois ele relata que, além de ter alforriado a Sofia (pagando pela carta), era pai de seus três filhos, todavia não coabitava com ela diariamente, mas vinha às vezes à casa para rever seus afetos. Ele não menciona que tinha pagado a carta de um filho, mas talvez o africano também tenha participado do projeto de resgate de liberdade de seu filho juntamente com Sofia. Isso pode ter acontecido com outras famílias. Mas, para minha infelicidade, não pude constatar empiricamente (com mais casos representativos) essa situação. Mas, de fato, podemos sim enquanto historiadores e historiadoras estarmos superestimando essa realidade em nossas pesquisas sobre as relações familiares entre os escravizados.

Historiadora Natália Garcia Pinto
Historiadora Natália Garcia Pinto
Qual foi a importância, em seu trabalho, dos Catálogos Seletivos de Cartas de Alforrias publicados pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul no âmbito do projeto “Documentos da Escravidão”?

Foi de suma importância, diria. Meu primeiro contato com as Cartas de Liberdade foi através desse trabalho ímpar realizado por essa instituição pública. E nesses tempos sombrios sempre é bom salientar a importância desse trabalho para a comunidade acadêmica e para a sociedade civil, que podem ter acesso a essa documentação. O trabalho de catalogar as alforrias me auxiliou em um primeiro momento para a confecção dos meus bancos de dados, ainda quando escrevia meu projeto de doutorado. Pelo catálogo pude averiguar várias categorias que foram trabalhadas em minha tese, tais como: o nome do alforriado, filiação, cor, idade, profissão, nome do proprietário, estado civil, condição da carta de liberdade. Foram informações imprescindíveis levantadas nos “Documentos da Escravidão” que permitiram a esta historiadora problematizar algumas questões de pesquisa e objetivos a serem abordados no estágio inicial da tese.

Um dos pontos mais importantes do seu trabalho é o vigor da pesquisa empírica. Como você vê a importância do trabalho documental e do cruzamento entre fontes?

Obrigada pelo reconhecimento, Rodrigo. Os documentos são indispensáveis para a sistematização do conhecimento histórico. A compreensão do conhecimento acumulado historicamente é imprescindível para a produção de um novo saber na historiografia, para evitarmos uma mera reprodução do conhecimento. Por isso, como pesquisadora e professora, sempre enfatizo aos meus alunos que o trabalho com fontes sempre permite ampliar o conhecimento sobre o passado, porém, para entender esse passado, é necessário realizarmos perguntas à documentação coligida para transformar aquele conhecimento em uma evidência de pesquisa histórica. Tanto para minha dissertação quanto para a tese, o trabalho documental e o cruzamento de fontes foi muito importante, principalmente por trabalhar com os escravizados e libertos, grupos subalternos que não produziram fontes a respeito de suas vidas. O que temos a respeito deles foi registrado e documentado pela mão que os regia e punia. O uso intensivo de fontes documentais, aliado ao cruzamento das informações, foi um caminho para tentar “capturar o vivido” pelos sujeitos investigados. Evidente que essa escolha foi imbuída também devido aos conselhos e orientações recebidas pelo meu orientador de mestrado, o professor e Doutor Paulo Moreira, um apaixonado pela pesquisa. E como você bem pontuou, o empírico foi um dos pontos altos dos meus trabalhos, todavia tive que tomar certos cuidados para tratar a documentação coligida como, por exemplo, a escolha da técnica e da metodologia para tratar distintas fontes. Acabei por eleger a ligação nominativa como uma ferramenta metodológica, perseguindo pelo rastro dos nomes dos indivíduos pesquisados nas diferentes fontes. Podes perceber que meu trabalho tem uma grande influência da micro-história. Entretanto, a utilização dessa técnica implica em uma poderosa armadilha ao pesquisador, pois é necessário reunir uma massa de dados expressiva sobre o objeto pesquisado nas mais diferentes fontes. Mas, ao trabalhar com a temática da escravidão valendo-se da técnica proposta pelos historiadores italianos, enfrento dois problemas. O primeiro reside na dificuldade de levantar dados expressivos em distintas fontes a respeito do nome dos cativos, devido a sua própria condição social. O segundo problema consiste na dificuldade de perseguir um mesmo sujeito escravo pela repetição de nomes (João, Maria, José, Antônio, Antônia, Francisco, Manoel, Joaquim) e a ausência de sobrenomes desses indivíduos. Uma das soluções utilizadas por esta historiadora foi de seguir o nome e sobrenome dos senhores para tentar capturar os indivíduos estudados em diversos momentos de sua existência na documentação coligida. Mesmo ciente dessa limitação, a técnica é útil para a análise histórica. Não sei se acabei fugindo da pergunta, mas dando continuidade ao teu questionamento acredito que o trabalho com fontes possibilita ao historiador ampliar o conhecimento sobre o passado, no meu caso, possibilitou na prática vislumbrar histórias de vida de homens e mulheres que lutaram pela conquista da liberdade.

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