Entrevista com Melina Kleinert Perussatto – Parte II
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No trecho da entrevista publicado na semana anterior, a historiadora Melina Kleinert Perussatto vinha explicando as opções metodológicas tomadas em seu mestrado e em seu doutorado, além de explicar brevemente a história do jornal “Exemplo”.
Você tem pesquisado no Arquivo Público recentemente?
Sim, porque eu sigo investindo no estudo das trajetórias, agora, da família proprietária do estabelecimento onde O Exemplo foi fundado, com ênfase ao Calisto Felizardo de Araújo, “patriarca” da família Calisto, pai de dois dos fundadores do periódico. Não venho há um tempinho, mas fiz um pedido recente para voltar a ver, porque estou mapeando o entorno dessa família também. Encontrei, por exemplo, o inventário do sogro de Calisto que tem me mostrado como se deu a constituição da unidade familiar do Calisto com a Joana. Além da importância da herança material, Calisto se tornou o tutor dos cunhados, irmãos da Joana, evidenciando que na construção da vida em liberdade, e aqui estou falando em meados do século XIX, foi marcada pela composição de uma família extensa que, certamente, concorreu para a construção da imagem pública de Calisto, que ainda não era identificado como barbeiro. Na abertura do inventário, Calisto estava como sua liberdade restituída há menos de cinco anos. Enfim, tenho buscado documentação ligada a essa família que tem sido objeto do meu pós-doc, pensando na liberdade, na cidadania, no trabalho, nessas três esferas, em como elas confluem e são informadas por intersecções de raça, classe e gênero. Ainda que muito pontuais, as relações de gênero têm emergido a partir de dados que tenho conseguido sobre algumas das mulheres, como a Joana e sua filha Maria Torquata. Contra esta tem a mencionada ordem de despejo, que também viabiliza pensar nas particularidades das experiências e existências dessas mulheres negras no XIX e primeiras décadas do XX.
Ela é autora da ação de despejo ou ela é vítima?
Ela é a vítima. Ela é vítima da ação de despejo e a que promove é uma italiana. Então também dá para pensar na esteira do que o Marcus Vinícius de Freitas Rosa tem trabalhado sobre as relações raciais entre subalternos, como imigrantes e negros. A propriedade era dessa mulher italiana e a vítima de despejo era uma mulher negra, que consegue negociar, quitar a dívida e permanecer na casa, que ficava na Lopo Gonçalves, na Cidade Baixa, que é uma região densamente povoada por pessoas negras nesse período. Há aí uma nítida relação desigual, atravessada pela racialização, de acesso à propriedade e também os conflitos e dificuldades enfrentadas por mulheres negras para se manterem em suas moradias. Dá para pensar também nessas dinâmicas do espaço urbano; inclusive essa família que começa a sua unidade familiar na rua dos Andradas, a principal do centro da cidade, bastante conhecida por ser uma área de redações jornalísticas, enfim, dá pra pensar em como a família Calisto vai indo para os arrabaldes da cidade, Cidade Baixa Menino Deus... Mas um filho, que é um dos fundadores e que se vincula ao republicanismo, permanece na rua dos Andradas. Então essa família também viabiliza que, qualitativamente, pensemos em processos de segregação espacial que outros autores e outros historiadores já têm apontado para o pós-Abolição em Porto Alegre. Tem inclusive o importantíssimo trabalho da Daniele Vieira, da Geografia, sobre os territórios negros.
E como você encara o desenvolvimento do campo do pós-Abolição e qual é o lugar do teu trabalho nesse desenvolvimento?
Então, eu entrei no campo por meio da minha tese, mas ele já era algo que permeava meu horizonte de pesquisa justamente porque, desde a minha dissertação, a liberdade sempre foi algo muito presente, sempre foi um prisma de análise. Ainda que eu trabalhasse com escravidão, com as dinâmicas de escravidão, eu tinha como foco entender as lutas por liberdade, como famílias, basicamente mulheres negras, mães e filhos, lutavam para se libertar e se manterem em liberdade nos anos finais do escravismo. Então eu entro nele [no campo do pós-Abolição] por meio da tese, em termos cronológicos, mas em termos de questões eu já vinha pensando nesse sentido. O Rio Grande do Sul tem um protagonismo muito grande, acredito eu, no desenvolvimento do campo e aí considerando tantos trabalhos que se nomeiam como trabalhos do campo, como aqueles trabalhos que informam o campo, mas que ainda não o assumiam para si, até porque ele ainda não havia sido assim nomeado ou constituído Cito o trabalho da professora Beatriz Ana Loner, que é uma das principais fundadoras do campo, mas também os trabalhos da Liane Muller, da Jane Mattos, da Íris Germano, do José Antônio dos Santos, do Paulo Moreira, enfim, vários trabalhos ainda dos anos 1990, e que estavam pensando não só cronologicamente sobre as experiências negras nesse período que é o pós-Abolição, mas também experiências de liberdade negra antes da Abolição, experiências desvinculadas da escravidão, como é especialmente o caso da dissertação da Liane [Susan Muller]. É importante dizer que o campo não diz respeito apenas a uma cronologia, mas sobretudo à liberdade e articulada à racialização. E o meu trabalho se insere nesse fervor aí, nessa ebulição do campo. Eu tive a felicidade de participar da fundação do GT [Grupo de Trabalho da Associação Nacional de História] e construir minha tese em meio a vários debates e discussões. BO campo aqui no estado tem se centrado nas experiências associativas, pensando no trabalho da Liane, da Beatriz Loner, mas também nos trabalhos mais recentes, como o da Fernanda Oliveira, do Marcus Vinícius de Freitas Rosa, do Felipe Bohrer, que também dialogam com trabalhos sobre ou partir da imprensa negra, como é o caso dos trabalhos da [Maria Angélica] Zubarán, do José Antônio [dos Santos] e do meu trabalho. Destaco ainda a dissertação da Ana Flávia Magalhães Pinto, de 2006, que insere O Exemplo no conjunto de experiências de imprensa negra oitocentista no Brasil. Ainda que o campo estivesse ganhando seus primeiros contornos no Brasil, sobretudo com a tradução de “Além da escravidão” e da publicação do artigo da Ana Rios e da Hebe Matos na Topoi, da coletânea “Quase-cidadão” do Flávio Gomes com a Olívia Cunha, a dissertação da Ana é considerada um importante trabalho para o campo do pós-abolição, sobretudo por centrar seu foco sobre a liberdade e as lutas por cidadania promovidas por gente livre em tempos de escravidão. Em diálogo com a produção nacional, destaco ainda os trabalhos centrados nas memórias e na consciência histórica de comunidades quilombolas, como é o caso do teu trabalho [Rodrigo Weimer] e da Cláudia Daiane [Garcia Molet], que agora foi premiada com Prêmio Capes de Teses. Há ainda a tese da Sarah [Calvi Amaral Silva] que sofistica o entendimento sobre cor e raça no pós-abolição... Sem falar, é claro, de todo o trabalho do pessoal lá de Santa Maria, do GEPA [Grupo de Estudos do pós-Abolição], e o pessoal que está em outras instituições construindo esse campo. Então, em termos cronológicos, a gente tem tanto esse grupo de pessoas que tem trabalhado com o período imediato do pós-Abolição, se a gente pode assim dizer, quanto trabalhos num período mais avançado. E aí eu destaco a entrada que esse ano o GT registrou de pesquisadoras e pesquisadores do período da Ditadura Militar, que nos fazem pensar em como esse pós-Abolição pode ser pensado na segunda metade do século XX. Enfim, o campo cronologicamente avança, mas também tem recuado, a depender das perguntas feitas e das fontes estudadas. É um pouco difícil de pensar em termos de um balanço historiográfico do campo aqui no Estado, mas eu penso que assim como as experiências desses sujeitos eram plurais, heterogêneas, o campo também tem se constituído dessa forma, de forma heterogênea, plural e disseminada, felizmente Aliás, sugiro como leitura o teu capítulo no novo livro sobre história do Rio Grande do Sul.1 Os eventos viabilizam que a gente tome conhecimento e que também pense na outra dimensão fundamental do campo, que é o ensino de história. Em âmbito nacional, o campo tem atentado cada vez mais para isso: como afinal o nosso trabalho acadêmico, nossa produção historiográfica, chega na escola e, de forma ampliada, concorre para o ensino de história em suas mais variadas dimensões? Então diria que hoje localizo meu trabalho dentro desse esforço de pensar trajetórias de pessoas negras na liberdade articulada ao trabalho de produção de representações positivas e afirmativas sobre a história negra, em conformidade com os marcos legais desencadeados pela lei 10.639/2003. A gente tem um longo caminho ainda, pensando especialmente nessa interlocução com o ensino de história, que para mim é uma das grandes urgências do campo em termos de diálogo e expansão. Felizmente, e aqui destaco a atuação do GT Emancipações e Pós-Abolição, esses desafios são enfrentados de forma coletiva e propositiva. Apesar de todos os revezes, tem muita coisa boa sendo produzida.
1 WEIMER, Rodrigo de Azevedo. “Personagens do 14 de maio”: a construção da liberdade por “pretos” e “pardos” no imediato pós-Abolição no Rio Grande do Sul. In: NEUMANN, Eduardo; BRANDALISE, Carla. O Rio Grande do Sul revisitado: novos capítulos. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2019.
Para acessar a primeira parte da entrevista com Melina, clique aqui.