Entrevista com Max Ribeiro - Parte I
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Max Roberto Pereira Ribeiro é graduado em História pelo Centro Universitário Franciscano (2010), mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013) e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2017). Tem experiência nas áreas de História Indígena, História da América e História do Brasil. É pesquisador das populações indígenas da América Meridional nos séculos XVIII-XIX. Sua tese foi premiada no concurso da ANPUH-RS de 2021.
Max, você pode nos falar sobre sua trajetória de pesquisa e sobre as principais temáticas de suas pesquisas de mestrado e doutorado?
Como muitos e muitas, tive meu primeiro contato com pesquisa, arquivos e fontes na graduação, durante o período em que fui bolsista de iniciação científica, lá no Centro Universitário Franciscano – hoje UFN –, em Santa Maria - RS. Fiz parte de um projeto de pesquisa, coordenado pelo professor Luís Augusto Farinatti que tinha como objetivo o estudo de hierarquias sociais na fronteira sul do Brasil a partir de registros batismais da Igreja Católica. Aqueles registros – da localidade de Alegrete, RS –, mostravam presença indígena missioneira significativa, evidenciando uma realidade pouco conhecida da comunidade historiadora. Não que a existência de guaranis fora das missões fosse desconhecida, mas o expressivo contingente populacional indígena existente em outras partes como Alegrete era o que chamava atenção. Decidi fazer uma busca através do mesmo tipo de fonte, porém de outra localidade. Busquei pelos registros de batizados do século XIX de Santa Maria e, para surpresa, haviam muitos guaranis registrados. Trabalhei com aquelas fontes no Trabalho de Conclusão de Curso, realizando uma breve descrição demográfica da população guarani que passou pela Capela de Santa Maria (chamada assim no século XIX). A partir daquele momento, segui com a temática indígena em minha trajetória de pesquisador, o que resultou numa dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS e numa tese doutoral, defendida no PPGH da Unisinos.

Durante o mestrado, residi em Porto Alegre. Eu tinha uma bolsa do CNPq. Daquele modo, pude pesquisar nos arquivos da capital, tanto no AHRS quanto no APERS, coisa que fazia diariamente. Em função disto, minha dissertação contou com um corpo documental bastante heterogêneo. Nela, busquei descrever a situação que ficaram os guaranis após a anexação dos chamados sete povos missioneiros em 1801, por luso-brasileiros. Pude notar que muitas famílias se deslocaram das Missões até as capelas e freguesias que iam sendo formandas no século XIX. Passaram a viver como agregados em terras privadas. Outros se tornaram errantes e marginais àquele mundo. Seja como for, o que ficou demostrado foi a capacidade social dos guaranis de se reinventarem num contexto totalmente desfavorável.
Na tese, continuei com esta temática buscando explicar as razões de aqueles indígenas terem ido buscar áreas específicas para se estabelecerem e não outras. Foi preciso analisar a segunda metade do século XVIII, quando os guaranis se viram no meio da disputa colonial entre Espanha e Portugal. A tensão resultou no Tratado de Madrid (1750) o que teve impacto direto sobre os guaranis que residiram nas Missões, especialmente para aqueles que viveram na parte oriental, hoje Fronteira Oeste do RS. Muitas famílias abandonaram as Missões Orientais, buscando o Vale do Jacuí a partir de 1756, ocupado pelos portugueses desde 1752. Havia duas interpretações historiográficas para aquele ocorrido. A primeira dizia que os guaranis teriam voltado às matas para viver de forma semisselvagem. A segunda afirmava que os guaranis haviam decidido mudar de vassalagem, saindo do jugo espanhol para buscarem melhor sorte nos domínios de Portugal. Em minha tese, entretanto, evidencio que os guaranis possuíam uma relação ancestral com um vasto território que remontava às antigas reduções do Tape (1620-1640). Passaram a reivindicar o território junto aos espanhóis e aos portugueses argumentando que aquelas terras eram de seus ancestrais, os primeiros indígenas a se tornarem cristãos, segundo a narrativa que passaram a usar de forma política contra o Tratado de Madrid. Concluo que não houve uma mudança de vassalagem senão apenas a luta pela permanência num território compreendido pelos guaranis como sendo sagrado devido à presença de seus antepassados cristianizados.
Em sua dissertação você pesquisou alguns documentos do Arquivo Público. Quais foram e de que maneira contribuíram na construção de seu trabalho?
Sim, tive a felicidade de poder pesquisar no APERS, um dos maiores acervos documentais da América-Latina. Durante o mestrado, segui os passos de outros colegas, como o professor Maximiliano Mac Menz quando, em sua dissertação de mestrado, apresentou uma análise sobre processos criminais do século XIX que faziam referência a guaranis. Estes processos são ricos em detalhes sobre aqueles indígenas. Fiz um levantamento destes processos, porém não pude incorporá-los plenamente a minha dissertação. Meu tempo era curto e eu já tinha muito material para analisar. Destaco, entretanto que o volume de fontes analisadas nem sempre aparece num trabalho, pois no caso de indígenas, é comum analisar muito material e encontrar poucas pessoas classificadas como “índio” ou “guarani”. É o que acontece também com os processos criminais. Entre várias caixas e maços, um processo chamou atenção. Era um caso de defloramento, ocorrido em 1832, de uma menina guarani de 9 anos. O estupro foi praticado por um homem guarani, conhecido na região de Santa Maria por ser desertor e desordeiro. O que deu origem ao processo foi uma petição feita pelo pai da menina junto ao juiz de paz que se revoltou com o caso. O guarani que praticou o estupro foi preso.
Que tipo de informações você pode obter através do processo-crime e a que conclusões e reflexões elas lhe levaram?
É uma fonte rica em detalhes que vão de descrições físicas dos réus, até descrições psicológicas das vítimas. Além disso, há um conjunto de informações básicas sobre réus, vítimas e testemunhas, como “cor” ou “raça”, gênero, local de moradia, idade e profissão. Dependendo do escrivão existem outras informações sobre os réus como vestimenta, condição física, etc. São informações que podem ser analisadas em série e se tornam “metadados” em planilhas digitais como o Excel ou Access. Dentro destas planilhas, podemos fazer consultas como determinar a “cor” ou “raça” das pessoas citadas, procedência geográfica e profissão, por exemplo. No caso específico dos guaranis missioneiros, os processos criminais sugerem que famílias e ou indivíduos guaranis mantiveram grande mobilidade entre as Missões e as “protocidades” do Rio Grande do Sul. Também se nota que a inserção social daquela população se dava através da prestação de serviço no campo, como ser peão ou agricultor. Outra forma era o recrutamento para a defesa das fronteiras; tratava-se da formação de milícias guaranis. Isto se vê pelas referências nos processos criminais. São informações em relação aos homens indígenas, pois sobre as mulheres, as referências não permitem nada conclusivo senão especulações. Ainda é um hiato historiográfico identificar a inserção das mulheres guaranis naquele contexto histórico do século XIX.
As fontes custodiadas no Arquivo Público raramente são compulsadas por pesquisadores de história indígena, talvez pelo fato do trabalho dos índios não ser objeto de herança legal e, portanto, inventariado. Entretanto, sua pesquisa evidencia que a documentação penal ou mesmo outros documentos cíveis podem trazer boas surpresas. Nesse sentido, você acredita que existe um potencial pouco explorado no Arquivo Público para o estudo das populações indígenas?
Sem dúvida! Além de processos criminais, os inventários post mortem são outro conjunto de fontes que apresentam indígenas. Não conheço nenhum trabalho de fôlego que tenha se utilizado destas fontes para a escrita da história indígena. Fiz um levantamento de alguns inventários e percebi alguns poucos indígenas como inventariados. Porém, nunca escrevi nada sobre isto. A pouca atenção dada ao APERS por parte de pesquisadores da história indígena, acredito que venha de um simples fato. Falo da metodologia. A etnografia é, sem dúvida, a técnica mais utilizada nos estudos da história indígena e, por muito tempo, este foi um domínio quase que exclusivo da antropologia. No caso dos guaranis das Missões, a descrição do passado destas populações foi feita com base em relatos e textos jesuíticos pelos quais se buscava uma certa essência na historicidade destes povos. O que seria o “verdadeiro índio?” Se tentava percebê-lo livre dos julgamentos morais dos padres e das autoridades coloniais. Apesar do esforço nobre pela busca de uma interpretação “descolonializada”, por assim dizer, a abordagem etnográfica acabou gerando esta impressão de essencialismo, a ideia de “índio puro”. Dentro da história indígena, este panorama mudou a partir de finais dos anos 1980 e início da década de 1990, quando historiadores como John Manuel Monteiro começaram a buscar os indígenas em outras fontes. Na tese doutoral de Monteiro, cujo livro Negros da Terra é correspondente, se vê, por exemplo, o uso de inventários e testamentos pesquisados na Arquivo Público de São Paulo. Para a história indígena, este livro é um marco por sua abordagem inovadora, tanto em técnicas de pesquisa quanto ao uso de diferentes arquivos, indo muito além da etnografia. Acredito que ainda não damos a atenção devida ao potencial das fontes do APERS para a história indígena. Não por desconhecimento das fontes. Muitas vezes, alguns colegas se deparam com indígenas em suas pesquisas, mas acabam os deixando de lado por julgarem que não possuem formação ideal para abordá-los. Isto é um erro. Se passa a impressão de que é preciso dominar antropologia e que somente assim será possível estudá-los. É evidente que existe uma necessidade em se conhecer os debates da antropologia, especialmente no que se defende na atualidade, a chamada antropologia histórica, pensada para se ter o melhor das duas ciências. Contudo, um esforço inicial é preciso. Minha dissertação, por exemplo, não versou sobre nenhuma teoria antropológica, embora apareçam inúmeras referências à antropologia. É um trabalho puramente empírico cuja importância científica reside no esforço de mostrar como nossa história é inundada pela história indígena. Mostro a formação de uma cidade, a Capela de Santa Maria a partir de 1804 e como ela contou com população indígena em sua gênese. As fontes judiciais, em muitos casos, evidenciam um cotidiano, um conjunto de práticas, é como ver num caleidoscópio, cada cultura contribuindo com seu colorido particular.
Na próxima semana vamos conferir a continuidade da entrevista com Max Roberto Pereira Ribeiro!