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Entrevista com Glaucia Giovana Kulzer - Parte 1

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Glaucia Giovana de Lixinski de Lima Kulzer é graduada em História pelo Centro Universitário Franciscano (2001), onde também cursou especialização em História latino-americana (2002). É graduada, também, em pedagogia pelo Centro Universitário Uninter – pólo Porto Alegre (2018). É mestra em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2009). Atua desde 2013 no Setor Educativo do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM) como Coordenadora Educativa.

1) Gláucia, você poderia nos explicar brevemente a temática de sua dissertação de mestrado?

Em primeiro lugar quero deixar registrada minha alegria em participar desta entrevista e agradecer o convite. Sinto-me lisonjeada em compartilhar com os demais pesquisadores um pouco da minha trajetória de pesquisa e ressalto, sobretudo, a importância do acervo do APERS, que é fundamental para nosso trabalho. Com relação a minha pesquisa para a dissertação de mestrado, elegi como objeto de estudo o grupo da elite regional de Santa Maria (RS), no período de 1858 a 1889, a partir dos inventário post-mortem do APERS. A proposta foi conhecer para além da atividade econômica desenvolvida por esses homens incrementando a história social, estudando e reconstruindo a trajetória de vida, padrões de conduta e o seu dinamismo naquela sociedade do XIX. Esboçar essa realidade história através de um grupo de indivíduos, em uma sociedade hierarquizada, onde uma pequena minoria detinha uma grande parte da riqueza existente naquela região, distribuída em grande parte na forma de terra, gado e escravos. Estabeleci faixas de riquezas, tendo como base os inventários, verificando que apenas cinco indivíduos compunham o grupo da elite regional de Santa Maria (RS). Dentre estes, um era comerciante e quatro eram grandes proprietários/criadores de gado e concentravam seu patrimônio em bens de produção e animais. Entre esses identifiquei três destes sujeitos na “Relação de 1858”, que consiste no Mapa estatístico do número de estâncias, tipo de criação, número de animais e empregados, localizado no Arquivo Histórico do RS. Isso significa dizer que, das cincos maiores fortunas, quatro tiveram origem em atividades rurais e apenas uma em negócios mercantis. Destes cinco, a maior fortuna e o maior número de gado para todo o período (1858-1889) pertenceram a Francisco José Pinto, o mais bem-afortunado entre os membros do grupo da elite agrária regional. A partir desta constatação buscou-se compreender através da pesquisa a origem do patrimônio de Francisco José, sua estrutura familiar, o que resultou na recuperação da trajetória da família Pinto. A dissertação demonstrou como essa família construiu seus laços afetivos, utilizou-se da mobilidade espacial, como tinha o acesso à propriedade da terra em um momento de expansão da fronteira agrária, bem como as estratégias para permanecerem neste seleto grupo em uma sociedade oitocentista em transformação.

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Historiadora Glaucia Giovana Kulzer
2) Qual a sua trajetória de pesquisa e a importância dos documentos do Arquivo Público na elaboração do seu trabalho?

Durante a graduação, morava em Santa Maria, meu primeiro contato com fontes históricas foi guiado pelas professoras e orientadoras Marta Borim e Medianeira Padoim, que me apresentaram o Centro de Genealogia em Nova Palma (RS), e foi neste local que me apaixonei pela pesquisa, pelos documentos e pela história regional. Já na especialização, em Santa Maria, fui apresentada aos arquivos em Porto Alegre, e posso dizer também a pesquisa documental mais densa pelo meu professor de graduação e especialização Luis Augusto Farinatti, na época era meu orientador, partilhou comigo seu conhecimento, suas fontes e anotações. Pesquisei os Autos de Legitimação de Posse, que estavam no Arquivo Histórico de Porto Alegre. Lembro como fosse hoje meu encantamento ao me deparar com documentos tão antigos e ricos em informações, com mapas gigantes. Na época, não tinha computador, nem máquina fotográfica, muito menos celular, então, tive que copiar tudo que precisaria para que pudesse retornar ao interior munida de informações, já que vir a Porto Alegre era bem oneroso para uma estudante de graduação. Desses documentos brotavam nomes e mais nomes, na época trabalhava com o universo agrário de Santa Maria e seus os lavradores nacionais. Já no mestrado de História, residia em Porto Alegre, tive um contato maior com os inventários post mortem, com os processos criminais do Arquivo Público de Porto Alegre (APERS). Sempre solicitava os documentos e, os profissionais, do APERS, me atendiam muito bem e sempre deixam prontinho as pilhas de inventários para eu ler. Os documentos do APERS foram essenciais na minha trajetória, como pesquisadora. Nesta época, já possuía uma máquina fotográfica e um computador, o que facilitou muito minha pesquisa, mas, nunca abandonei meu caderno de anotações. E foi assim que comecei a explorar um universo empolgante, apaixonante e rico de dados e informações contidas nessas documentações. A fonte mais pesquisada no APERS foram, sobretudo os inventários, um total de 253, utilizei-a na maneira quantitativa, mas também na forma qualitativa, pensando nessa fonte como “memórias póstumas”, mas uma via possível por onde podemos coletar apontamentos sobre trajetórias individuais dos finados e também dos grupos aos quais pertenciam e assim encontrei elementos para a construção de uma história agrária de Santa Maria. O APERS me proporcionou a vivência com os documentos e a prática do historiador, foi nesse espaço, que também tive o auxílio de pesquisadores experientes, como Paulo Moreira, Daniela Vallandro de Carvalho, Luis Augusto Farinatti, Helen Osório, Jonas Vargas, que com uma enorme gentileza cederam seu tempo para discutir as fontes, o tema da pesquisa, bibliografias e ampliar meu olhar, assim como o professor Karl Mosma, meu orientador no mestrado na Unisinos.

3) A que você atribui seu interesse pela história agrária? E como, a partir dela, você chegou ao método onomástico e à micro-história?

Descendo de uma família de pequenos agricultores, e sempre valorizei muito seu trabalho com a terra e a luta constante pela sobrevivência desse grupo, e como seus filhos, no caso, meus pais tiveram que encontrar alternativas de sustento e deixar a terra para se tornarem proletários. Chegando à universidade e com uma imensa fome de conhecimento a pesquisa se tornou meu projeto. Durante a graduação iniciei pesquisas com imigração italiana, na região da quarta colônia, depois polonesa no vale do Jaguari, já no final desta etapa me deparei com a dissertação de mestrado de Luis Augusto Farinatti e seus lavradores nacionais, apresentando a mim a história de homens até então invisíveis no cenário rural do século XIX, que com poucas posses, mal deixaram registros a serem pesquisados. O encantamento pelo tema resultou num projeto de pesquisa para a especialização, tendo como orientador, o professor Farinatti. Como se já não bastasse ter apresentado o tema, forneceu fontes e bibliografias, e entre essas destaco o livro de Giovanni Levi “A herança imaterial”, a tese da professora Helen Osório, a tese do professor Fabio Kuhn, e os textos do saudoso professor Garavaglia, entre outros, que me inspiraram. Foi nesse momento que concluí que precisava prosseguir nas pesquisas e me aproximei de uma história centrada nos indivíduos e suas trajetórias. Para isso realizei um diálogo intenso com a micro-história a fim de analisar as práticas e relações sociais. A redução na escala de observação, aliada à utilização de uma gama variada de fontes primárias, permitiu redefinir o objeto de pesquisa, problematizar suas dimensões e demonstrar as complexas relações. Munida de textos sobre micro-história, prosopografia, história agrária, história regional, trajetórias familiares, tomei como fio condutor os inventários post mortem do APERS, ora de forma quantitativa e hora qualitativa para compreender a formação de uma elite regional em Santa Maria. Os inventários por vezes são utilizados como uma fonte de análise meramente econômica, porém nos fornecem vestígios, nomes que nos auxiliam a incrementar a história social, permitindo reconstruir a história de homens e mulheres. Os inventários são processos judiciais que legalizam a transmissão de bens através da partilha aos herdeiros ou beneficiários. Os bens são descritos um a um e subdivididos em itens: bens móveis, bens de raiz (terra, casa), bens semoventes (animais, escravizados), dívidas ativas e passivas, e por vezes trazem consigo outros documentos em anexo, como por exemplo testamentos, discussões entre herdeiros, cartas de alforrias, atestado de óbito, batismo e casamento. Para cada bem é atribuído um valor que somado forma o conjunto patrimonial do indivíduo. Analisando essas informações temos a oportunidade de pesquisar patrimônios formados por diversas atividades relacionadas ao comércio, agricultura e à pecuária. Apesar das limitações que essa fonte apresenta, trata-se de uma fonte imprescindível para a história social, pois apresenta uma fotografia dos bens do defunto no momento de sua morte. Elegendo um grupo de cinco indivíduos, com as maiores fortunas, foi possível empreender uma análise micro utilizando como recurso narrativo, o inventário de Francisco José Pinto, para compreender a formação de uma elite regional que se mescla com a história de Santa Maria. Em contato com o inventário de Francisco é possível percebermos que não se tratava apenas de dados econômicos e sim de uma fonte prenhe de possibilidades de seguir indícios, detalhes que permitem reconstruir a história de várias pessoas ligadas por laços e relações diversas. Através da formação do patrimônio, foi possível verificar o processo de acumulação de capital, o acesso à terra e seguir nomes. Foi necessário retroceder no tempo para concluir que as heranças não são apenas compostas por bens arrolados nos inventários, recebia-se de legado laços afetivos, alianças, ou seja, também se herdava o patrimônio imaterial. Ao seguir os nomes que compunham a Família Pinto, a partir das partilhas de bens de da construção do patrimônio foi possível reconstruir o percurso dessa família desde Sacramento até Santa Maria e constatar a formação de uma elite regional.

Confira, na próxima quarta-feira, a continuação da entrevista com Glaucia Kulzer!

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul