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Entrevista com Paulo Afonso Zarth - Parte 2

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Na primeira parte da entrevista com Paulo Afonso Zarth, na semana passada, o historiador nos contou sobre suas experiências como pesquisador no acervo do Arquivo Público em um momento em que seu acervo estava sendo descoberto para a história serial. Vamos conferir a sua continuação!

6) Seu trabalho também é fundante, junto a outras pesquisadoras, no estudo da história agrária. Como você avalia a constituição e a evolução desse campo de estudo da história?

Em primeiro lugar precisamos lembrar que a linha de tempo da história da humanidade é fundamentalmente rural. A hegemonia política e econômica do mundo urbano industrial é recente.

A história agrária brasileira, na concepção atual, tem suas origens no problema levantado pelas pesquisas que tratavam do papel ou da importância da pequena lavoura na historia econômica e social do Brasil colonial e imperial.

A questão em pauta era uma crítica ao domínio da história das grandes lavouras de exportação – açúcar, café, algodão – baseadas no trabalho escravizado. Como consequência emergiu a história dos camponeses, dos lavradores pobres, até então quase invisíveis na historiografia, seguindo um movimento já iniciado pela sociologia e antropologia. A história dos caboclos vem desse movimento.

Um dos fundamentos desse movimento crítico está baseado nos trabalhos de Ciro Flamarion Cardoso e Maria Yedda Linhares, os quais orientaram centenas de novos pesquisadores desse campo historiográfico. Nas palavras de Maria Yedda Linhares, tudo começou com um programa de pesquisa apresentado em 1976 na Fundação Getúlio Vargas (RJ), com o apoio do Ministério da Agricultura, intitulado Evolução Recente e Situação Atual da Agricultura Brasileira. “O objetivo era fazer um amplo inventário de fontes nos estados do Norte e do Nordeste do Brasil, na perspectiva de levantar fontes localmente existentes, de modo a serem tratadas nos moldes da história serial” (Linhares. 1997, p.171)

O problema sobre a história da agricultura gerou grandes debates teóricos nos anos 70 e 80. Entre eles, sobre o viés weberiano, a ideia de espírito do capitalismo de Max Weber. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, embora afirmasse ter um pé em Marx e outro em Weber, defendeu a tese segundo a qual os cafeicultores paulistas seriam predispostos a inovação, portadores de racionalidade capitalista, e contrários à escravidão. Favoráveis ao estabelecimento do capitalismo, portanto. Com esse raciocínio estudou as charqueadas do Rio Grande do Sul comparando-as com as da Argentina, com base no trabalho assalariado e racionalmente organizado. Capitalista portanto. Tal tese foi criticada mais tarde mostrando que as charqueadas utilizavam divisão do trabalho e inovações técnicas mesmo com mão de obra escrava. A pesquisa de Berenice Corsetti foi inovadora nesse sentido.

Por outro lado, pesquisas da UFF e UFRJ avançaram o tema e partiam das historiografia francesa de Marc Bloch, com forte perspectiva regional, e de autores baseados em Marx, como Pierre Vilar e Witold Kula, que estudaram a economia não capitalista, a empresa feudal por exemplo, mostrando sua racionalidade e especificidade.

Voltando para a história das pequena lavouras e dos camponeses, novos aportes teóricos foram utilizados abrindo a possibilidade de análises inovadoras e mais adequadas para compreender os problemas. Contrariando a ideia de camponês atrasado e pouco interessado em inovação, a economista Ester Boserup demonstrou que o camponeses tradicionais não eram atrasados como se pensava e sim utilizavam de sistema de cultivo de pousio longo, com base na derrubada- queimada, um sistema racionalmente organizado.

Teoria semelhante em certos aspectos, foi difundida por agrônomo francês Marcel Mazoyer através dos modelo de sistemas agrários, no qual o sistema derrubada-queimada é igualmente racional e utilizado no mundo inteiro. Tais teorias são importantes pois destroem a ideia de atraso e ignorância dos povos indígenas ou camponeses tradicionais. Os cursos de agronomia utilizam esse modelo para estudar a agricultura camponesa atual.

Outro autor que merece destaque nesse debate teórico é Alexander Chayanov. No livro “Teoria econômica do campesinato” demonstrou a racionalidade da agricultura camponesa. Esta tese custou sua vida, pois contrariava a política do governo Stalin e de sua campanha contra a pequena lavoura camponesa russa.

Essas referencia teóricas, resumidas aqui, implicavam nova metodologia, novas fontes e técnicas de fichamento, planilhas específicas para cada caso, organização de séries estatísticas etc. A crítica da época denunciava que a bibliografia predominante se baseava em grandes sínteses, com foco nos principais produtos para exportação, de estatísticas gerais dos governos das províncias e do império. A pequena lavoura não aparecia ou aparecia pouco. A solução para esses problemas foi ir aos arquivos e fuçar nos inventários post-mortem, processos-crime e relatórios de câmaras municipais entre outros. Muito mais trabalho para o pesquisador.

Paulo Afonso Zart
Paulo Afonso Zarth
7) Suas pesquisas antecipam diversas questões debatidas desde então pela historiografia sobre o século XIX: a importância de pequenos proprietários; a participação de trabalhadores escravizados nas lides campeiras; sua articulação com o peonato livre; a produção para o abastecimento interno; etc. Como você se sente ao perceber que diversas proposições suas tornaram-se, hoje, praticamente consensos entre os historiadores; um ponto de partida a partir do qual outros pesquisadores lançaram novos questionamentos?

O que escrevi foi fruto da metodologia e das teorias aprendidas durante os cursos de pós-graduação na Universidade Federal Fluminense e dos problemas científicos enunciados anteriormente. Portanto,

minhas publicações são decorrentes do conhecimento acadêmico e dos diálogos entre colegas e professores. Não posso deixar de mencionar que recebi bolsas de pesquisa da CAPES e da UNIJUÍ, que me propiciaram tempo e recursos suficientes para realizar o trabalho. Tenho acompanhado as novas pesquisas e vejo com satisfação que sou mencionado com frequência. Não imaginava essa repercussão. Também festejo quando certos temas são aprofundados, melhorados ou criticados com seriedade.

O movimento produzido pela historiografia comentada acima e seus novos aportes teóricos e metodológicos, foi fundamental para dar visibilidade aos grupos pouco conhecidos. Deste modo, a ideia dominante do Rio Grande do Sul de grandes estâncias de um lado e de colônias de imigrantes de outro passou a ser revisada. Com os dados pacientemente coletados nos arquivos, por diversos colegas, apareceram pequenos pecuaristas, trabalhadores escravizados nas lides campeiras, lavradores nacionais, os chamados caboclos, abastecendo o mercado de alimentos, produzindo erva-mate e assim por diante. Tais ideias não são originais, mas a metodologia utilizada de organização de séries de dados permitiu quantificar, analisar e comprovar essa realidade.

A história dos povos indígenas do século XIX, mesmo não sendo tema de destaque na história agrária regional, também cresceu de forma exponencial com a entrada de uma legião de estudantes nos arquivos. Graças a isso temos acesso a dezenas de teses sobre Kaingang, Xokleng, Charrua e Guarani.

8) A que você atribui o crescente desinteresse dos historiadores pela história econômica?

O desinteresse pela história econômica vem sendo comentado e debatido há muito tempo em todo o mundo. E tal debate é longo e complexo. De um lado, cabe recordar as críticas ao chamado reducionismo economicista dos anos 60 e, de outro, a atenção dispensada a outros temas emergentes e até então pouco valorizados e necessários para preencher lacunas na historiografia. Imagino que a crítica contundente à história econômica, acusada de reducionista, a partir dos anos 90 no Brasil, tenha contribuído para afastar estudantes da área. No entanto, os problemas levantados pela crítica poderiam ser facilmente superados com novos métodos de análise, os quais trariam contribuições para todas as áreas. Particularmente, as leituras de trabalhos de história econômica produzidos em novas perspectivas foram de fundamental importância para compreender a história dos pequenos lavradores e do trabalho escravizado nas estâncias de gado.

Atualmente é fundamental retomar e ampliar pesquisas em historia econômica no Rio Grande do Sul. É preciso investigar e construir análises bem fundamentadas para participar do debate sobre a situação difícil na qual nos encontramos. A oferta de cursos e disciplinas teóricas e metodológicas com novos abordagens nos cursos de graduação e de pós-graduação poderia entusiasmar estudantes para desenvolver projetos na área. Estamos diante de um grande campo aberto para pesquisas inovadoras.

9) Seus trabalhos caracterizam-se por uma sólida base documental. Em um cenário historiográfico em que a pesquisa empírica sofre questionamentos crescentes, qual a importância que você vê nos arquivos?

Não faz sentido questionar a pesquisa empírica. É uma questão mal formulada. Uma sólida base documental coletada em arquivos é um dos elementos fundamentais para uma boa pesquisa histórica. É claro que se pode fazer boas pesquisas sobre algum objeto que dela prescindam. Mas é notório que uma investigação em fontes documentais nos arquivos pode ter repercussões importantes tanto no campo historiográfico como no campo da cultura e da política.

É a pesquisa documental que dá visibilidade a grupos sociais deliberadamente esquecidos em todos os sentidos, com prejuízos significativos para sua convivência na sociedade brasileira, por exemplo.

A revelação da presença de trabalhador escravizado nas lides campeiras, bem documentados com dados empíricos, mexe profundamente na imagem dominante das estâncias pastoreadas exclusivamente pelo peão gaúcho livre e a cavalo. O recente episódio ocorrido na câmara municipal de Porto Alegre, quando um grupo de parlamentares se recusou a cantar o hino rio-grandense, tem tudo a ver com as novas pesquisas sobre a história da escravidão do Rio Grande do Sul.

Por fim cabe fazer um elogio retrospectivo aos dirigentes estaduais que mandaram construir o prédio do Arquivo no início do século passado. Descartando qualquer juízo sobre outras ações é inegável que o presidente do estado, ou seus colaboradores, sabia muito bem o valor jurídico e cultural dos documentos e da necessidade de armazená-los em prédio adequado para esse finalidade. É o que se deduz da mensagem de Carlos Barbosa Gonçalves à Assembleia Estadual de 1911: “com o fim de acautelar, quanto possível, contra a ação destruidora do fogo, a importante papelada que constitui a garantia da riqueza de todos, foi resolvida a construção de um edifício ad-hoc feito de pedra, tijollos, cimento e ferro, incombustível, enfim”. (Gonçalves, 1911).

Espero que os futuros dirigentes continuem com a mesma percepção.

Referências

BLOCH, Marc. La Historia Rural Francesa. Barcelona, Editorial Crítica. 1978

BOSERUP, Ester. Evolução agrária e pressão demográfica. São Paulo : Hucitec e Polis, 1987

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977

CHAYANOV, Alexander. The Theory of Peasant Economy. Homewood : The American Economic Association, 1966, (editado por Daniel Thorner, Basile Kerblay e R.E.F. Smith).

CORSETTI, Berenice. Estudo da Charqueada Escravista Gaúcha no Século XIX. Niterói, 1983. (Dissertação de Mestrado) Universidade Federal Fluminense.

GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada a Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1911.

KULA, Witold. Problemas y Métodos de la Historia Económica. Barcelona : Península. 1973

LINHARES. Maria Yedda. História agrária. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (Orgs.) Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997

MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo. São Paulo: UNESP; Brasília: NEAD, 2010

VILAR, Pierre. Desenvolvimento Econômico e Análise Histórica. Lisboa : Presença, 1982.

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