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Entrevista com Maurício Reali Santos - Parte I

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Maurício Reali Santos licenciou-se em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2014 e concluiu seu mestrado, pela mesma instituição, em 2018. É autor da obra “Nas fronteiras da domesticidade”, publicada em 2021 pela Paco Editorial. Atuou como professor de História no Projeto Educacional Alternativa Cidadã entre 2011 e 2014 e na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, desde então. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Social do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: mundos do trabalho; trabalhadoras domésticas; luta por direitos; Educação e Ensino de História. Seu curriculum vitae está disponível aqui

1. Maurício, você poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória profissional e de pesquisa, exercitando um pouquinho a “ilusão biográfica”?

Entrei no curso de Licenciatura em História da UFRGS em 2009. No início, não tinha ainda definido que gostaria de ser professor. No segundo semestre, comecei um estágio no Memorial do Rio Grande do Sul, onde fazia visitas guiadas com estudantes de escolas. A partir daí e das vivências na universidade comecei a pensar em ser professor.

Maurício Reali Santos
Maurício Reali Santos
Durante a graduação tive professores/as e colegas incríveis, com quem aprendi muito. Também tive alguns professores que eram muito vinculados à pesquisa, mas não tiveram experiência docente na Educação Básica e, aparentemente, não tinham muita identificação com a docência. Embora fosse um curso de licenciatura, as disciplinas da História acabavam, a meu ver, enfatizando mais a formação para pesquisa do que de professores. Não havia nas ementas das disciplinas uma preocupação sistemática de pensar como ensinar história para as diferentes faixas etárias. Isso me afetava bastante e acho que acabou marcando minha trajetória, fazendo com que eu desejasse tanto quanto possível manter um pé na docência e outro na pesquisa.

Assim, depois do estágio no Memorial, participei do Projeto Educacional Alternativa Cidadã (PEAC), que é um projeto de extensão muito bacana no Campus do Vale que visa preparar jovens e adultos das classes populares para o vestibular e para o ENEM. Ali dei meus primeiros passos efetivamente como professor de História. Também participei do PIBID, onde pude vivenciar o cotidiano da escola básica. Depois, mais para o final da graduação, fui bolsista de Iniciação Científica do professor Benito Schmidt quando ele estava pesquisando e escrevendo a biografia de Flávio Koutzii. Aprendi muito na iniciação científica, pude observar de perto os “bastidores” de uma pesquisa histórica. Essa experiência, somada às disciplinas de Teoria e Metodologia da História com a professora Silvia Petersen e aos seminários de História Social da Escravidão e do Racismo com a professora Regina Xavier, foi muito importante na minha formação como pesquisador. Inclusive foi em um desses seminários que tive contato com fontes relacionadas ao trabalho doméstico no pós-abolição e daí pesquisei o tema no meu trabalho de conclusão de curso, orientado pela Regina Xavier.

Me formei em 2014. Fiz alguns concursos públicos naquele ano e acabei sendo nomeado professor de História na Rede Pública Municipal de Porto Alegre e também na Rede Estadual. Como eu já estava participando de processo seletivo para o mestrado, optei por assumir apenas no Município, onde trabalho até hoje na Escola Municipal de Ensino Fundamental Profa. Judith Macedo de Araújo, que fica no Morro da Cruz, na zona leste da cidade. Em 2015, ingressei no Mestrado em História na UFRGS onde fiz a pesquisa “Experiências e lutas de trabalhadoras domésticas por direitos em Porto Alegre (1941-1956)”, sob orientação do prof. Benito, concluída em 2018 e publicada em livro no ano 2021 com o título “Nas fronteiras da domesticidade”.

2. Você pode nos apresentar os principais argumentos de sua dissertação de mestrado?

Na última década, muito se falou (e com justiça!) sobre as desigualdades e precariedades presentes nas relações de trabalho doméstico, que remontam ao período escravista, e sobre a necessidade de estender os direitos trabalhistas para esta categoria que contempla milhões de pessoas, sobretudo mulheres negras no Brasil. De maneira muito resumida, o principal ponto da pesquisa foi reconstruir essa história de desigualdades e de exclusão de direitos a partir das iniciativas de trabalhadoras que contestaram essa exclusão. E o principal argumento da dissertação foi demonstrar como, ao lado de diversas formas cotidianas de resistência, acionar a Justiça para reivindicar direitos fez parte do repertório de ações das trabalhadoras domésticas, e essas contestações, junto a outras mobilizações, numa perspectiva de longa duração, contribuíram para a conquista de direitos.

3. O que despertou seu interesse pela luta por direitos de trabalhadoras domésticas?

Durante a graduação, me interessei bastante pela perspectiva da história dos “de baixo”, pensar o papel das pessoas “comuns” na história, o papel dos trabalhadores e das trabalhadoras, de sujeitos excluídos ou pouco destacados pelas abordagens mais tradicionais, e também refletir sobre as possibilidades de ação e de resistência dos sujeitos a situações de opressão.

Apesar deste interesse, o encontro com o tema da luta por direitos de trabalhadoras domésticas começou meio por acaso. No final da graduação, fiz uma disciplina eletiva com a professora Regina Xavier sobre história das relações raciais. Tendo em vista que o TCC estava se aproximando e eu ainda não tinha um tema de pesquisa definido, me propus a fazer um exercício de pesquisa empírica para o trabalho final da disciplina no acervo do Núcleo de Pesquisa História da UFRGS. Busquei examinar como a cor dos indivíduos aparecia nos jornais do período pós-abolição. Foi aí que encontrei pela primeira vez a seção de anúncios de emprego doméstico dos classificados do Correio do Povo em que havia discriminações explícitas como “Procura-se criada, prefere-se branca.” Os anúncios e notícias do jornal acabaram sendo minha fonte para pesquisar sobre o mercado de trabalho doméstico na virada do século XIX para o XX em Porto Alegre.

Depois do TCC, não via muitas possibilidades de seguir e aprofundar o tema em um mestrado. Foi então que o professor Benito Schmidt deu a sugestão de procurar processos trabalhistas no acervo do Memorial da Justiça do Trabalho. Ele lembrava ter visto reclamatórias trabalhistas envolvendo domésticas na época em que foi diretor e a ajudou a organizar o Memorial. Ao vasculhar os processos microfilmados referentes aos primeiros anos de funcionamento da Justiça do Trabalho, encontrei algumas reclamatórias de domésticas reivindicando direitos, o que chamou muito a atenção porque naquela época elas estavam excluídas da legislação trabalhista.

Fiz um levantamento bibliográfico e percebi que havia poucas pesquisas históricas sobre as trabalhadoras domésticas em meados do século XX e também sobre as lutas desta categoria por direitos. Ao mesmo tempo, estava em regulamentação no Brasil a PEC da Domésticas (2015), gerando discussão e repercussão pública a respeito. Também saíram filmes sobre o tema como Casa Grande, de Fellipe Barbosa, e Que horas ela volta?, de Ana Muylaert. Assim fui me dando conta da atualidade e da relevância social do tema, o que me motivou bastante a fazer a pesquisa.

4. Em que os processos criminais custodiados pelo Arquivo Público contribuíram para a construção do seu trabalho?

Os processos foram muito importantes porque, por meio deles, pude obter diversas informações que contribuíram para traçar um perfil das trabalhadoras domésticas em Porto Alegre em meados do século XX, por exemplo, indícios sobre a cor, idade, naturalidade, formas de contratação, remuneração, condições de trabalho, entre outras coisas. Aos poucos, também fui percebendo que os processos-crime oportunizavam analisar um conjunto mais amplo de situações ligadas ao trabalho na domesticidade como pobreza e orfandade; trajetórias de migração do interior para a capital; imbricações entre relações de trabalho de familiares; sociabilidades; rotatividade no emprego; conflitos entre trabalhadoras, patrões e patroas; violências contra as domésticas. Tudo isso foi importante para compreender os motivos que levaram algumas trabalhadoras a reivindicar direitos nos tribunais, com também os limites da via institucional e a utilização de meios informais para resolver conflitos e lutar por interesses.

Vamos acompanhar, na próxima semana, a continuação da entrevista com Maurício Reali!

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