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Entrevista com Helen Scorsatto Ortiz - Parte I

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APERS Entrevista
APERS Entrevista - Foto: Divulga APERS

Helen Scorsatto Ortiz é professora e historiadora. Cursou doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014) e mestrado em História na Universidade de Passo Fundo (2006). É especialista em História Contemporânea (FAPA, 2000) e graduada em História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999). É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) - Campus Porto Alegre, onde atualmente também exerce a função de Diretora de Extensão. Autora do livro “O banquete dos ausentes: a Lei de Terras e a formação do latifúndio no norte do Rio Grande do Sul (1850 – 1889), publicado em 2011 pela Editora da UPF.

1) Helen, você pode nos relatar em linhas gerais sua trajetória de pesquisa?

Rodrigo, em primeiro lugar, agradeço o gentil convite para essa entrevista. Tenho muito apreço pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), pelo que representa, de forma geral, à cultura, história e patrimônio sulinos e especialmente para nós historiadores.

APERS Entrevista - Helen Ortiz
Historiadora e professora Helen Scorsatto Ortiz

Respondendo à sua pergunta, tomei primeiros contatos com a pesquisa, ao tempo da graduação em História na UFRGS, durante estágio realizado na Assessoria de Estudos e Pesquisas (Assespe) da Secretaria Municipal da Cultura, no município de Porto Alegre. Ali, juntamente a competentes servidores e demais estagiários, participei de pesquisas relativas à história de Porto Alegre e ao campo do cinema & história. Foi uma experiência muito marcante e fundamental na minha trajetória pessoal e profissional, que me permitiu adentrar pela primeira vez em alguns arquivos da capital, ampliar, na prática, conhecimento sobre fontes históricas e seus usos, exercitar a criatividade, escrever e produzir conjuntamente. 

Durante a especialização em História Contemporânea, meu trabalho final versou sobre o movimento estudantil e teve um caráter mais bibliográfico. Assim, as pesquisas de maior fôlego e imersão em arquivos foram as de mestrado e de doutorado, quando me voltei para o estudo da história agrária. Para a escrita da dissertação, cujo objetivo principal foi discutir como se deu a aplicação da Lei de Terras de 1850 no primitivo município de Soledade e quais as consequências econômicas, sociais e políticas daí advindas para a região em estudo, foram fundamentais as fontes do APERS, do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) e do Gabinete da Reforma Agrária e Cooperativismo – Divisão de Terras Públicas do Estado, em Porto Alegre. No interior do estado, consultei fontes no Escritório da Emater Soledade e, sobretudo, no Arquivo Histórico Regional (AHR), em Passo Fundo. Há significativo acervo sobre Soledade no AHR, que pude explorar em maior profundidade durante o doutorado, quando me propus a discutir e analisar os conflitos agrários ocorridos no município de Soledade e que chegaram à Justiça entre os anos de 1857 e 1927. Neste trabalho, utilizei uma série variada de fontes para a investigação, sendo a base um conjunto de processos judiciais, evolvendo embargos, esbulhos, despejos, autos de manutenção e de restituição de posse, etc. À época, o acervo sobre Soledade no AHR ainda estava em fase de organização. Eram centenas de processos guardados em caixas, separados apenas por ano. Não havia um meio de busca disponível para esse acervo e foi preciso abrir caixa por caixa, manuseando cada processo para ver do que se tratava e o que de fato interessava à tese. A maior parte dos processos de litígios envolvendo a terra que analisei estão sob guarda do AHR. Contudo, os processos que constituem o acervo do APERS foram igualmente fundamentais, uma vez que são qualitativamente significativos e são também os processos mais antigos, todos referentes ao período imperial.

2) Qual foi a contribuição da documentação custodiada no Arquivo Público para os seus trabalhos?

Ter contato com o acervo do APERS e poder acessá-lo foi essencial para a minha formação enquanto historiadora e para os trabalhos que desenvolvi, no campo da história agrária. Tanto no mestrado quanto no doutorado consultei registros paroquiais de terras, inventários post-mortem e processos judiciais, referentes aos séculos 19 e 20. Durante o mestrado, as informações contidas nos registros paroquiais de terras, juntamente a outros documentos, auxiliaram no entendimento da estrutura fundiária da região que pesquisei, no norte do Rio Grande do Sul, ao passo que a consulta aos inventários post-mortem possibilitou o conhecimento sobre a criação animal, a mão de obra, a produção agrícola, a condição de vida da população, dentre outras. Essa fonte foi de essencial importância, porque apresenta os preços dos animais, das terras, dos trabalhadores escravizados, etc., tornando possível comparações entre distintos bens em determinadas épocas e localidades. Na documentação policial e nos processos crimes procurei vislumbrar, ainda que parcialmente, a ação protagonista da população subalternizada. No doutorado, o foco esteve sobre os processos judiciais (ações de despejo, possessórias, embargos, etc.) e foram instrumentos importantes e reveladores das distintas visões e práticas a respeito do uso e acesso à terra e relativamente aos direitos de propriedade. Os processos de disputa pela terra, bem indispensável à reprodução da vida, forneceram informações que contribuem no entendimento dos complexos processos de apropriação territorial e expropriação dos trabalhadores do campo - uma realidade ainda muito presente em nosso país.

Desenvolvi a quase totalidade dos meus estudos de pós-graduação concomitante ao trabalho docente, em sala de aula, e, por isso, as férias escolares constituíam-se em momentos esperados e de “mergulho” nas fontes do APERS. A pesquisa na instituição foi sempre aprazível, dada a qualidade do atendimento, do acervo e das instalações, e pelo encontro/troca com colegas, ex-colegas e demais pesquisadores.

Recentemente, voltei às fontes do APERS, para a escrita de um artigo que compõe obra coletiva¹ a respeito do conflito agrário na terra indígena da Borboleta, um dos mais significativos do Rio Grande do Sul na atualidade.

3) Na pesquisa de mestrado você analisou fontes mais habituais aos historiadores e historiadoras, como registros paroquiais de terra, inventários e processos-crime. Durante o doutorado, explorou também outros processos civis, tais como possessórias e embargos. Qual o potencial desses últimos tipos documentais? Em sua visão, eles têm a oferecer elementos pouco explorados pelos pesquisadores e pesquisadoras?

De fato, no doutorado, referente ao município de Soledade, encontrei e analisei cerca de uma centena e meia de autos cíveis cujo foco central da disputa era a terra (sua posse/propriedade, extensão, legitimação ou uso/exploração). A tipologia desses processos mostrou-se variada e se diversificou ao longo das décadas pesquisadas: ações cíveis de embargo, de esbulho, de despejo, de obra nova, de força nova, de manutenção/restituição/turbação/reivindicação de posse, etc. Dentre esse conjunto, é nítido o predomínio de ações caracterizadas como possessórias, ou seja, próprias para a defesa da posse provada. Propô-las requeria provar a posse e, dependendo do caso, provar também o esbulho, ou a turbação, ou a ameaça temida. Já os embargos tinham intenção

de impedir que outras pessoas fizessem obras prejudiciais à sua propriedade ou aos seus direitos. Embargos tiveram ampla aplicação em diferentes regiões do mundo rural brasileiro, talvez pelo potencial de garantir a imediata suspensão dos atos ameaçadores dos réus. Na região pesquisada, comumente, as ações detonadoras dos pedidos de embargos eram as derrubadas de madeira, os levantamentos de ranchos, os apossamentos de campos e matos e as disputas pelos ricos ervais.

Expressão de relações sociais concretas, esse conjunto de disputas judiciais, incluindo possessórias e embargos, mostra a intensidade das divergências acerca da questão territorial e da legalidade das ocupações. Revela também o grau de ameaça às posses e propriedade na região de Soledade. A consulta aos processos permitiu perceber um cenário de intensos movimentos, desavenças e (re)acomodações entre sujeitos com perspectivas diferenciadas, também no tocante ao direito, e que, em maior ou menor grau, definiram ruamos de ocupação/apropriação/expropriação na região. Tais sujeitos fizeram parte de uma complexa sociedade rural, marcada pela diferença étnica, cultural e econômica. Ciente de que os processos judiciais representam apenas parte daquelas contendas, considero possessórias e embargos fontes potentes para conhecer distintas visões e práticas a respeito do uso e acesso à terra e a respeito das tensões, dos costumes e das noções de direito à terra.

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¹ TEDESCO, João Carlos e VANIN, Alex (orgs.). A terra indígena da Borboleta: múltiplas dimensões de um conflito agrário no sul do Brasil. Passo Fundo: Acervos Editora, 2022.

Leia na próxima semana a continuação da entrevista com Helen Ortiz!

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